Apesar da mobilização para juntar simpatizantes à causa, a revogação do Estatuto do Desarmamento acabou não vingando no ano passado. Mas os defensores da derrubada da lei, em vigor no País desde 2004, não desistiram. Mal foi iniciada a nova Legislatura e a Câmara dos Deputados, por meio de grupos interessados no tema, já abriu uma nova Comissão Especial para debatê-lo – e com formato muito semelhante àquela que por pouco não aprovou um projeto de lei pró-armamentista em dezembro de 2014.
Mais uma vez, a comissão foi amplamente tomada por deputados da Frente Parlamentar da Segurança Pública, também conhecida como “bancada da bala”, atualmente composta por mais de 240 legisladores. Dos 14 titulares apontados até o momento, dez fazem parte dela – entre os suplentes são seis –, incluindo o provável presidente, Marcos Montes (PSD-MG). Além do Estatuto, os objetivos principais do grupo são a mudança da maioridade penal e a “valorização das forças de Segurança”.
Da mesma forma, metade dos titulares da comissão contou com financiamento direto ou indireto de empresas da indústria armamentista nas eleições que os elegeram entre 2009 e 2014. A principal crítica dos opositores em relação à revogação é exatamente esta: de que a pressão para mudar a atual legislação é puramente baseada em interesses financeiros.
“Ano passado tínhamos um equilibrio de opiniões contrárias e a favor na comissão, apesar de, na minha visão, ele ter se mostrado mais voltado para a revogação. Acho que agora o ambiente será ainda mais favorável, com a Câmara dos Deputados mais conservadora, mais próxima da direita”, diz ao iG o deputado federal Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC), autor do Projeto de Lei 3722/2012, que basicamente extingue as atuais normas brasileiras sobre comercialização de armas de fogo.
Além do porte e da facilidade na aquisição de revólveres e afins, o PL tem entre suas principais normas: o aumento no número máximo de armas para cidadãos de seis para nove; a revogação da possibilidade de perda de porte caso o dono esteja embriagado com uma arma; a derrubada dos testes periódicos que comprovam a aptidão da pessoa de continuar usando arma; a elevação de 50 para 600 do número de munições que podem ser compradas anualmente; e a redução de 25 para 21 anos da idade mínima para se solicitar o porte. Se aprovado na Câmara, o projeto passa para o Senado e, por fim, para a presidente Dilma Rousseff, a quem cabe o poder de sancioná-lo ou vetá-lo.
Direito de defesa
A crítica daqueles favoráveis à revogação do estatuto é de que as autoridades responsáveis pela segurança pública não conseguem cumprir suas obrigações na sociedade, o que daria direito aos cidadãos de se defenderem da violência por seus próprios meios. Como diz Bené Barbosa, presidente da Viva Brasil, principal ONG pró-armamentista do País, “se a pessoa tem a casa invadida e não tem uma arma, a chance de proteção é zero. Isso não pode aconter”. A atual legislação, no entanto, permite ao civil com registro de porte possuir até seis revólveres e afins em sua residência e/ou ambiente de trabalho – permitindo, em casos especiais, também a posse na rua.
É aí que entra o segundo argumento dos pró-armamentistas. Segundo eles, desde que o estatuto passou a vigorar, em 2004, se tornou praticamente impossível conseguir um registro de armas – que demanda testes psicológicos, avaliação de antecedentes criminais, além do poder da Polícia Federal, responsável por conceder o registro, de vetar a interessados que a corporação julgar não necessitarem de porte.
Mas não é bem assim. Apesar da queda de concessões desde o início da aplicação da lei, relatórios da PF mostram que nos últimos 11 anos 72 mil registros de armas para defesa foram concedidos a civis no País – ou seja, eles são viáveis. O Exército brasileiro ainda confirma a venda de 500 mil armas no período em território nacional.
“Acho que estamos voltando ao estado medieval com essas ideias. Afinal, avançamos em tantas coisas em nossa democracia e, infelizmente, ainda não conseguimos discutir segurança pública com equilíbrio entre o direito e o dever”, analisa Regina Miki, secretária nacional de segurança pública do Ministério da Justiça.
“A violência só gera violência. Se a sociedade quer exigir que o Estado lhe dê mais segurança, ela tem de fazê-lo. Mas fazer lei por fazer não muda em nada a situação. Pelo contrário. Não podemos ter um exército de brasileiros na rua, sem comando, com potencial para se tornarem vítimas de furto de suas armas e de mortes como consequência de tê-las.”
A origem das armas
Em meio à volta do debate sobre a questão no País, resultados preliminares de uma pesquisa elaborada pelo Ministério Público de São Paulo em parceria com o Instituto Sou da Paz mostram que os integrantes da chamada bancada da bala e seus apoiadores possuem poucos argumentos de fato sólidos para embasar seu objetivo.
Enquanto os pró-armamentistas alegam que o estatuto só prejudica a população de bem, pois bandidos conseguiriam suas armas por meio de contrabando do exterior, o levantamento mostra que 40% das armas usadas para práticas de roubo e homicídio apreendidas entre 2012 e 2013 na capital paulista tinham origem legal – ou seja, foram vendidas legalmente para alguém com registro e, posteriormente, caíram nas mãos de criminosos. Além disso, 54% delas eram nacionais.
“O foco de uma comissão de segurança, caso da Frente Parlamentar, não deveria ser derrubar o desarmamento ou reduzir a maioridade penal, quando é sabido que os índices de mortes por arma de fogo caíram com o estatuto e apenas 1% dos homicídios são praticados por menores. Estamos perdendo tempo com essa discussão”, analisa Ivan Marques, diretor do Instituto Sou da Paz. “Ninguém está tentando proibir nada. O estatuto atual já permite que a pessoa tenha até seis armas. O que fazemos é controlar o uso de um instrumento perigoso para a sociedade. Não somos contra armas, mas, sim, a favor do uso responsável para um instrumento que é criado para matar.”
Além disso, os armamentistas se baseiam em pesquisas distantes da realidade brasileira para demonstrar que países liberais com armas têm menor taxas de homicídios do que aqueles que as proíbem. A principal delas se chama “Banir armas poderia reduzir assassinatos e suicídios?”, publicada pela Universidade Harvard.
Entretanto, o trabalho, assim como outros semelhantes, é baseado na realidade de nações como EUA e de países ricos da Europa. Contra eles entram levantamentos feitos no próprio Brasil, como o mais recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2013. Segundo ele, o índice de mortes por armas de fogo na verdade caiu 12,6% em dez anos no País, do início da restrição às armas em território brasileiro até o ano passado.