Não foi surpresa a exoneração do presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Antônio Costa, publicada nesta sexta-feira (5) no Diário Oficial da União, e assinada pelo chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha. Até o momento, não há um substituto para o cargo, mas quem ocupará interinamente é o general Franklimberg de Freitas.
A saída acontece em meio a um momento crítico em relação aos direitos dos indígenas e duas semanas após a denúncia de que Costa estaria pressionado pelo líder do governo no Congresso, deputado André Moura (PSC-SE), para que nomeasse aliados políticos para cargos na instituição.
Indicado pelo Partido Social Cristão (PSC), Costa é pastor evangélico e deveria deixar o cargo no dia 19 de abril, mas o governo decidiu mantê-lo por ser Dia do Índio.
Algumas fraturas na relação do governo com os povos indígenas e os interesses ruralistas foram expostas na última semana, quando foi confirmado o corte de investimentos na Funai, por exemplo. Além disso, houve o conflito de índios da etnia Gamela, que foram violentamente feridos – alguns correndo o risco de terem membros amputados – por dezenas de homens armados de facões, paus e armas de fogo, no povoado de Bahias, no Maranhão, no último domingo (30).
De acordo com a assessoria do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Costa afirmou em entrevista coletiva hoje que “ele [Serraglio] não está sendo ministro da Justiça, porque ele está sendo ministro de uma causa que ele defende no parlamento. Isso é muito ruim para as políticas brasileiras, principalmente para as minorias. Os povos indígenas precisam de um ministro que faça Justiça”.
Procurados pela reportagem, advogados analisaram a exoneração de Costa, bem como sua relação e o compromisso do governo com a pauta indígena, além de um possível enfraquecimento da Funai.
O advogado Bruno Pegorari, também pesquisador do Núcleo de Direito Global (FGV), afirma que o ponto de conexão entre Costa e a questão indígena foi quando anteriormente em sua carreira de dentista, Costa trabalhou com a saúde indígena. No entanto, o advogado analisa que as propostas dele para gestão da Funai eram não só colidentes com a finalidade do órgão, como também com os dispositivos constitucionais e convencionais de direito fundamental básico.
De acordo com o advogado, Antônio Costa:
(i) corroborou a frase absurda do Ministro da Justiça, de que ‘parar com essa discussão sobre terras, porque terra não enche a barriga de ninguém’, menosprezando a crucial importância da demarcação de terras para a realização dos direitos dos povos indígenas;
(ii) sugeriu que os índios precisam ser modernizados e inseridos no mercado de trabalho,
(iii) respaldou a atuação de grupos evangélicos nas aldeias.
Já ao negar ceder à pressões políticas, Costa mostrou, segundo Pegorari, que apesar da visão ultrapassada acerca do funcionamento da Funai, “ainda tinha algum bom senso em relação ao cargo que ocupava“.
Para o advogado, o que está acontecendo é uma tentativa de aparelhamento da Funai. “Querem parar as demarcações de terra, reduzir os programas de saúde, de proteção aos índios isolados, querem esvaziar a política federal voltada pro índio e com isso dar espaço pros fazendeiros, madeireiros e mineradoras que sempre tiveram um força desproporcional nesta disputa, garantirem o seu espaço definitivamente“, explica. E por esse motivo, “se a nomeação de Costa já foi preocupante, sua exoneração é verdadeiramente aterrorizante”, afirma Pegorari.
“Ruim com a Funai, pior sem ela“, afirma o advogado Konstantin Gerber, quando questionado sobre o papel do órgão. O que não dá, segundo ele, “é o STF impedir o ingresso de comunidades indígenas nos processos judiciais que estão, como uma avalanche, depois da inconvencional tese do marco temporal, anulando vários processos de demarcação, em completo desrespeito ao devido processo legal e ao acesso à justiça dos povos originários“.
Seguindo o mesmo pensamento de Gerber, Pegorari acredita que as atribuições da Funai não estão sendo respeitadas pelos seus administradores. “Veja, neste momento delicado e com um congresso e executivo tão inescrupuloso com a questão indígena, não se deve discutir mudança de legislação ou constituição. Se isso ocorrer, será pra tirar e não garantir direitos“, analisa.
Por que não usam o princípio da proporcionalidade para casos difíceis como esses de conflitos entre originários e fazendeiros? Importam a teoria da Alemanha e não usam quando devem usar. Podem e devem também se valer dos critérios interamericanos para demarcar, revisar títulos ou desapropriar terras, questiona Gerber.
Faz-se necessário, para Gerber, que assessores de juízes tenham especialização em direitos indígenas, porque “o que está havendo é um genocídio ou, por menos, uma tentativa de genocídio”. “Seria bom também deixar uma cópia para os ministros do STF do Relatório da Comissão Nacional da Verdade que tem capítulo próprio para as violações dos povos originários. O órgão para dar andamento às recomendações até hoje não foi criado“, diz.
Gerber contextualiza ainda os direitos dos povos originários com o direito internacional, ao dizer que “é preciso ler a lei da Funai com os olhos na Constituição e nas Convenções Internacionais de Direitos Humanos”. Ele explica que “o direito internacional exige que os processos de demarcação não podem demorar, isso exige aparelhamento, obrigações de fazer por parte do Estado Brasileiro“. E continua, “o Brasil será certamente condenado internacionalmente até que o próprio STF tenha a sensibilidade de rever seu posicionamento e perceber que as comunidades indígenas existem. Simples assim“.
Luta por demarcação de terras deve envolver diversos órgãos públicos
A dificuldade em torno da demarcação de terras indígenas no Brasil é história. O advogado Bruno Pegorari, acredita neste sentido que órgãos do Estado como Ministério Público federal, Defensoria Pública da União, Judiciário e sociedade civil “devem se somar aos povos indígenas brasileiros que já estão se mobilizando nessa luta”.
“A grande questão é que esta luta se trava principalmente dentro da Funai, Ministério da Justiça e Presidência, que são, exatamente nesta ordem, os órgãos do poder executivo responsáveis pela demarcação. Além disso, a luta deve ser travada pela sociedade contra o Congresso, buscando evitar a aprovação da PEC 215, pela qual busca-se transferir a competência da demarcação das terras do executivo para o legislativo. Se isso acontecer, acabou índio nesse país. Por fim, o último ‘front’ de luta é o judiciário“, explica.