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Atriz relata estupro durante viagem à Tailândia

Bruna Fornasier sofreu abuso na madrugada do dia 27 de maio e, desde então, vem lutando para conseguir justiça

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Bruna Fornasier na Tailândia

“Está cada vez mais fácil contar a minha história. Quanto mais eu conto, mais fácil fica. E, acredite, eu preciso contá-la. Isso me alivia, me conforta. Fui abusada, violentada, estuprada na Ilha de Krabi, na Tailândia. Cada um pode escolher o termo que achar mais adequado, mas o fato é que estava dormindo no final de maio em um albergue e acordei com um sujeito em cima de mim enfiando dedos em minha vagina. Consegui expulsá-lo da cama aos chutes, evitando que ele conseguisse a penetração com o pênis. Poderia ser o fim de uma experiência traumática, mal sabia que era só o começo. Nos dias seguintes, fui questionada, ignorada e até humilhada ao tentar denunciar o agressor. Achei que soubesse o que passa uma mulher em situação semelhante em Krabi, São Paulo, Paris, Mossoró ou Tegucigalpa. Não sabia. No fundo, tentamos contar uma história que ninguém quer ouvir. Do gerente do albergue ao policial, passando por médicos e gente da embaixada, a impressão é de que todos adorariam que tudo não passasse de um terrível mal entendido.

Contei muitas e muitas vezes os detalhes do que se passou na madrugada do dia 27 de maio. Contar está cada vez mais fácil. O difícil é organizar o que sinto. São muitos os sentimentos que se cruzam. Medo, raiva, desânimo, cansaço, inconformismo, tudo se misturando nas horas mais variadas do dia. Convivo hoje com uma insônia que nunca tive. Perdi a vontade de sair. Nem sei o que é pior: os amigos que me abraçam, com pena, ou os que desviam o olhar, por não ter o que dizer. Mal sabem todos é que nos dias anteriores eu estava radiante. Planejei por muito tempo essa viagem para a Ásia.

Era uma viagem especial. Sou atriz, mas trabalho com turismo, sou instrutora de mergulho na Ilha de Páscoa. Meu namorado é um Rapa Nui, nasceu na Ilha, e estávamos trabalhando ultimamente em um hotel no Peru. Já viajamos muito, mas essa era uma viagem minha, solitária, exploratória. Já tinha passado por Hong Kong, Bali, Cingapura e Malásia. Tinha um mês e meio de viagem, mais ou menos metade do planejado. A Tailândia era um dos lugares mais desejados: queria mergulhar, experimentar novas comidas. Dias antes, sozinha em Cingapura, olhando a fonte da Marina Bay, eu tive um estalo. Foi a primeira vez que me dei conta de que, aos 25 anos, já tinha viajado para vários lugares, vim para a Ásia sozinha com o dinheiro que juntei trabalhando, estava realizada. Era uma viagem interna, estava descobrindo coisas sobre mim mesma, coisas que a gente só consegue perceber quando está sozinha. De alguma forma, essa viagem tão especial, de amadurecimento, estava me preparando para o que viria a seguir. Nunca estive tão forte acreditando em mim.

Na primeira noite na Tailândia, fui a uma festa e voltei cansada ao albergue. O lugar era renomado, bem recomendado. Cada quarto tem cerca de 10 cubículos. As camas são fechadas nas laterais e só é possível a entrada e saída através de um acesso protegido por uma cortina, onde ficam os pés da cama. Dormi fácil, como sempre. Demorei um pouco a perceber que era real o que me acontecia, não um pesadelo. Um indiano estava em cima de mim, já me machucando com os dedos na vagina. Os chutes funcionaram, ele sumiu do quarto. Algumas pessoas que estavam chegando da festa perceberam o meu desespero. Um garoto se ofereceu para trocar de cama e quarto. Não sei como, mas consegui dormir. Talvez um mecanismo de autoproteção. Era como se eu nao tivesse assimilado tudo que estava acontecendo e guardando energia para a Via Crucis dos dias seguintes.

Acordei desorientada, sem saber ao certo o que fazer. A primeira providência foi um banho, eu me sentia suja, como se carregasse a mão do sujeito dentro de mim. Dias depois, um médico me aconselharia a tomar muita água e assim ir várias vezes ao banheiro. Isso daria a sensação de estar constantemente “se limpando” nos primeiros dias. Sábio conselho, funcionou.

Depois, resolvi agir. Fui à portaria do albergue para denunciar e pegar os dados do meu agressor. Em um primeiro momento, a preocupação do encarregado era preservar o nome do lugar caso eu fosse escrever algo em redes sociais. Fiquei possessa. Peguei minha mala e procurei outro hotel. Liguei para minha família e escrevi um post no Facebook relatando o que aconteceu. O passo seguinte foi procurar a polícia turística. A partir daí, foi como se eu estivesse entrando em um videogame, com muitas fases para passar. Na primeira, fui bem, encontrei uma policial da minha idade que se sensibilizou com a história. Ela seria fundamental no processo todo porque conseguia traduzir bem (nunca terei certeza disso…) o que eu dizia. Pouca gente fala bem inglês na Tailândia e o tailandês é incompreensível. Só que não foi nada fácil lidar com a polícia. Era como se não acreditassem em mim. Me perguntaram até quantos dedos o indiano teria enfiado em mim. Tive que deitar no chão para representar como foi. Os limites da humilhação estavam sendo esgarçados.

O médico confirmou que minha vagina apresentava um pequeno corte, tinha um inchaço, só que aquilo não provava nada. É cruel como isso funciona no mundo todo. Se eu tivesse sido estuprada com violência, surrada, seria “tudo mais fácil”, assim conseguiria provar o que aconteceu. Por sorte, a psiquiatra captou o ocorrido e assinou um laudo que confirmava que eu havia sido vitima de abuso sexual. Esse processo durou “só” cinco horas na delegacia. Mais três para os exames no hospital, tudo no mesmo dia. Foram três dias de idas e vindas com a polícia turística, tudo o que queria no momento era que encontrassem o sujeito. Nesse meio tempo, eu estava trancada no hotel, com medo. Em vários hotéis, aliás. Trocava de lugar todas as noites. Cheguei a escrever no bloco de notas do smartphone a seguinte mensagem: “Alguém chegou no hotel e quer me matar”. A frase estava copiada, bastava colar no WhatsApp e “enviar”.

Apesar de não ser exatamente popular no Facebook, meu post bombou. Talvez porque essa seja uma história tão corriqueira quanto secreta. Acontece muito, pouco se fala. Quando alguém topa se expor, vários compartilham. Duas pessoas leram e me alertaram terem visto o estuprador na ilha de Kho PhiPhi. Um deles tirou uma foto do agressor e me enviou o endereço onde ele estava hospedado. Passei as informações à polícia. Tremi e chorei quando soube que havia sido pego. As redes sociais estavam me salvando.

Faltava prender o canalha. Ele foi detido. Fui à delegacia acompanhada de três policiais mulheres. Tive que confirmar que aquele jovem sorridente que conversava com os oficiais tinha me violentado. Senti medo e repulsa. Preferi que ele não me visse. No depoimento, ele disse que estava bêbado, que se sentou na beirada da minha cama e colocou a mão na minha perna e então eu lhe disse “vai embora, vai embora“. Essa foi a versão dele. Para mim, o depoimento foi ótimo, ele reconhecia que tinha tocado em mim, embora não confessasse a maneira como tocou. Ele insistiu em falar comigo na delegacia, mas não aceitei.

No momento em que experimentava um fugaz momento de alivio, mais uma bordoada: os donos do albergue queriam também me processar por “difamar”o estabelecimento deles. Tive muito ódio. Como a legislação tailandesa é francamente pró-difamado, eu corria o risco de ficar retida no país por um tempo indeterminado. Acabei fazendo dias depois, com ajuda da minha mãe e de meu padrasto, um acordo até favorável. Não mencionaria o nome do albergue e em troca eles apoiariam uma instituição brasileira ligada à violência contra a mulher.

O processo contra o meu agressor ainda está em andamento. Os oficiais me informaram que ele será levado à corte tailandesa e terá que ficar um mês preso. Se optar por pagar uma fiança de 200 mil baths, cerca de US$ 6 mil, poderá aguardar em liberdade o julgamento, mas não poderá sair da ilha de Krabi nem do país. Não sei se está preso ou solto. Em julho, será levado novamente à corte. Se assumir o que fez, terá de cumprir uma pena. Não sabemos por quanto tempo. Se não assumir, terá de ficar em Krabi até que o caso seja resolvido.

É um alívio saber que ele provavelmente jamais fará de novo. Que vários dos seus amigos talvez pensem cinco vezes antes de fazer algo parecido. Isso é bom, mas não resolve meu turbilhão interno. Sigo mexida, diferente. Emotiva, instável. Por mais que esteja segura em casa, acordo no meio da noite. É o inconsciente sugerindo que posso ser atacada de novo. E demoro horrores para dormir de novo. Não quero me sentir desejada por ninguém nesse momento. Claro que é uma fase e vai passar, mas tudo me faz entender os efeitos dos abusos sexuais. Desde o primeiro instante, optei por me expor, falar sobre isso ajuda a curar a ferida.

Fiquei impressionada com a quantidade de mulheres que me escreveram via Facebook para contar seus abusos. Histórias secretas, doídas. Gente que eu nem conheço e que precisa repartir suas dores. É triste demais, choro só de pensar. Mulheres que foram abusadas e jamais conseguiram “conversar” sobre isso. Por medo, vergonha e, inacreditável, culpa até. Ao mesmo tempo, tenho muito a agradecer a todos que me escreveram. No momento em que mais precisava, recebi força… de gente que nem conheço.

Não quero deixar por isso mesmo. Pretendo trabalhar em algum projeto relacionado ao abuso, quem sabe viajar pelo Brasil falando e ouvindo. O abuso pode ser decupado no antes, no durante e no depois. O antes seria a prevenção, o como evitar. Aí tem uma encrenca. Não acho justo recomendar reclusão às mulheres, não saia, não viaje sozinha, não use as roupas que você quer usar. Só falando, julgando, punindo conseguiremos mudar essa cultura macabra. E não será do dia pra noite. Vai demorar, depende da educação em casa, na escola, é cultural. Nesse aspecto, sei que meu relato pode ajudar na conscientização. O durante acaba sendo muito relativo. Gritar, chutar, tudo depende da situação, a mulher, dependendo da reação, corre risco de vida. Prefiro focar nesse depois, no pós. Por ser forte, independente, despachada, achei que eu fosse ficar bem rapidamente. E não foi assim, não está assim. É muito mais assustador do que eu imaginava. Ninguém lida com essa violência de maneira fácil. Gostaria de trabalhar nisso, no como tratar o trauma. Passei por isso, acho que posso ajudar. E é um jeito de eu me ajudar também. Preciso falar mais. Precisamos todos falar mais.”