Num estado conflagrado, vítimas inocentes da violência se multiplicam dia após dia. Um levantamento do EXTRA com base em dados da Polícia Civil revela que, de janeiro até 2 de julho deste ano, 632 pessoas foram feridas por balas perdidas no estado do Rio — a média é de mais de três ocorrências por dia, uma a cada sete horas. Desse total, pelo menos 67 vítimas morreram.
A contagem foi feita com base em registros de ocorrência classificados pela Polícia Civil como casos com “vítima de bala perdida”. A metodologia passou a ser usada pela instituição a partir de julho de 2015, após o EXTRA revelar, na série “Estatística de Festim”, que a forma usada pelo governo do estado para contabilizar vítimas de balas perdidas era falha. Atualmente, são contabilizadas como vítimas de balas perdidas pessoas atingidas por um disparo de arma de fogo que não eram alvo do atirador.
Madrinha de Vanessa, Neide chora com o sangue da menina em suas roupas Madrinha de Vanessa, Neide chora com o sangue da menina em suas roupas Foto: Marcelo Theobald
O levantamento mostra que a violência é mais presente em áreas mais pobres. Na capital, a Zona Norte registrou a maior parte dos casos, com 145 feridos. No mesmo período, a Zona Oeste teve 59 vítimas. A delegacia recordista em casos do tipo é a 21ª DP (Bonsucesso), que engloba a área do Complexo da Maré. Fora da capital, a Baixada Fluminense é a região do estado que lidera o ranking de registros, com 154 ocorrências. Quase 80% das vítimas são homens. Não foram contabilizados os casos das meninas Vanessa Vitória dos Santos, de 11 anos, morta por um tiro na cabeça dentro de casa no Complexo do Lins, e Samara Gonçalves, de 14, baleada dentro da escola em Belford Roxo, na Baixada Fluminense.
Para a antropóloga e ex-diretora do Instituto de Segurança Pública (ISP), Ana Paula Miranda, o número de vítimas de balas perdidas evidencia uma política de segurança pública voltada para o confronto nas áreas mais pobres do Rio.
— Não há uma política de segurança voltada para população. O que temos é uma política de confronto em determinadas regiões da cidade. E o estado tem que se responsabilizar por essas mortes — diz a especialista.
Na rua, em casa, na escola
O caso de Claudineia dos Santos Melo, de 29 anos, que teve seu filho baleado ainda em seu útero num tiroteio na Favela do Lixão, em Duque de Caxias, na última sexta-feira foi um dos últimos contabilizados pelo levantamento. PMs do 15º BPM (Caxias) afirmaram, em depoimento, que foram atacados por traficantes do local e não revidaram. A investigação, a cargo da 59ª DP (Caxias) ainda não identificou os responsáveis pelos disparos.
Nesta quarta-feira, Samara Gonçalves, de 14 anos, teve um pulmão perfurado enquanto brincava no pátio da escola, em Belford Roxo. De acordo com a PM, no momento em que a menina foi atingida, havia um tiroteio entre bandidos rivais das comunidades comunidades Colejão e Parque Floresta, que não ficam próximas da escola. A corporação informou que chegou ao local depois de a menina ter sido ferida.
Samara foi atingida nas costas; bala perfurou o pulmão Samara foi atingida nas costas; bala perfurou o pulmão Foto: Reprodução / Redes sociais
Na véspera, Vanessa dos Santos, de 10 anos, foi morta em casa com um tiro na cabeça, no Complexo do Lins. Em depoimento prestado ao Setor de Inteligência da Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP), nesta quarta-feira, o subcomandante da unidade, tenente Marcos Luiz, afirmou que policiais da UPP Camarista-Méier foram alvo de disparos e não revidaram. Segundo o oficial, ele foi ferido, no ombro, por tiros que partiram de dentro da casa da menina. A Divisão de Homicídios (DH) investiga o caso. Parentes de Vanessa, no entanto, acusam PMs pelo crime.
Diante de explosão no número de vítimas inocentes, o secretário de Segurança Roberto Sá determinou a criação de um grupo de trabalho para mudar normas internas relativas a operações policiais. Sá também estabeleceu que as polícias enviem à secretaria um relatório gerencial e outro com informações sobre disparos de armas de fogo por unidade operacional.