Brasileiros lideraram missão de paz da ONU por 13 anos. Haitianos temem novas turbulências, mas muitos desejam que país caminhe com as próprias pernas.
Nas ruas de Porto Príncipe, a capital haitiana, um misto de incerteza e alívio divide os habitantes após a decisão das Nações Unidas de encerrar a missão de paz há 13 anos no país. Nesta quinta-feira (30), o Brasil encerra sua presença no Haiti após 13 anos liderando militarmente a Missão das Nações Unidas para Manutenção no Haiti (Minustah).
Para o Exército e o Ministério da Defesa brasileiro, a operação termina com sucesso. Mas, para muitos haitianos ouvidos na capital, ainda há riscos de novos incidentes políticos e de grupos armados tentarem retomar o controle de áreas pacificadas. Ainda assim, muitos avaliam que já é hora de o país andar com as próprias pernas.
Não se veem mais capacetes azuis da ONU nas ruas. Agora, são agentes de bonés pretos da Polícia Nacional Haitiana (PNH), com cerca de 15 mil homens e armados de fuzis, que estão no controle da situação.
A capital se divide em duas: a parte acima da base do Brasil e da Embaixada dos Estados Unidos, mais nobre, economicamente ativa, com parte dela com iluminação e ruas limpas e pavimentadas, envolvendo em especial os bairros de Delmas e Petion-Ville, e a baixa Porto Príncipe, próxima ao litoral, uma região mais violenta, com enormes quantidades de lixo nas ruas e onde parece que nada mudou nos últimos 10 anos.
O mecânico Carl Hanryson, de 30 anos, é um dos pessimistas. “Tenho dúvidas e medo do que pode acontecer depois que a ONU for embora. O que está bom pode ficar péssimo. A ONU nos ajuda muito”, disse ele em Bel Air, na região central da capital.
Já a caixa de supermercado Johanne Jean Louis, de 20 anos, está otimista. “É hora de o país seguir sozinho. Podemos ter problemas, mas temos um governo legítimo. Não estamos em guerra. A economia pode ter problemas, porque a Minustah (missão da ONU para estabilização do Haiti) emprega muita gente e movimenta recursos. Mas temos que aprender a caminhar como país”, diz ela.
Sem muletas
A Minustah foi a quinta missão de paz da ONU no país caribenho. Iniciada em 2004, após um levante popular causar a renúncia do então presidente Jean Bertrand Aristides, era uma operação multinacional coordenada por Estados Unidos e Canadá, que ficou dois meses até que o Brasil fosse politicamente e militarmente convocado para chefiar a segurança, mas sob égide da ONU. O embaixador brasileiro Paulo Cordeiro, que chefiou a presença brasileira em solo haitiano desde o início da missão de paz até 2008, concorda que “é hora de o Haiti andar com as próprias pernas”.
“A ONU está saindo no momento certo. Ela é segura da estabilidade no Haiti. Mas esta é uma situação muito confortável. A gente precisa deixar eles soltarem as muletas e andarem com as próprias pernas. Durante alguns meses, isso vai doer. Mas a excessiva ajuda internacional, a imensa quantidade de ONGs, isso muitas vezes atrasa o desenvolvimento. Temos que deixar eles operarem sem muleta”, aponta Paulo Cordeiro, considerado um dos brasileiros que mais conhecem o povo haitiano.
Polícia Nacional
O comandante militar da operação internacional, o general brasileiro Ajax Porto Pinheiro, entende que um dos principais legados da ONU para o Haiti foi a formação da Polícia Nacional. Pinheiro crê que a polícia está reestruturada e bem equipada, capaz de fazer frente caso grupos armados tentem retomar território nas favelas. “A ONU nem cogita a possibilidade de voltar. Porque se tivermos que voltar, foi porque falhamos”, admite.
“O ambiente seguro e estável é o maior legado que deixamos. São 13 anos em que a paz trouxe empresas, emprego, renda e maior qualidade de vida. Sem isso, certos negócios não teriam sido abertos aqui”, disse. O oficial entende que o país também se encontra em um momento de estabilidade política nunca antes visto.
A Minustah foi a única operação da ONU comandada sempre por um único país – no caso, o Brasil. Entre 2005 e 2007, as tropas brasileiras realizaram operações para pacificar as três principais favelas de Porto Príncipe: Bel Air, Cité Militare e Cité Soleil, considerada o reduto de chiméres, grupos armados ligados a Aristide. Cité Soleil foi a última área entregue pelo Brasil ao Haiti: desde o início de julho a favela é totalmente responsabilidade da PNH.
O general da reserva do Exército Carlos Alberto dos Santos Cruz, oficial que por mais tempo comandou a missão, concorda com Pinheiro que o maior legado que fica para o Haiti é a segurança nas ruas.
“Logo após o desmantelamento das gangues, era evidente que o povo se sentia mais livre. Os vendedores ambulantes voltaram para as ruas com força total, os mercadinhos e comércios locais reabriram”, relembra Santos Cruz, que também comandou a missão de paz da ONU no Congo.
O sonho estava indo bem, até que um forte terremoto devastou o país em 2010, deixando cerca de 300 mil mortos. Desde então, os países parceiros tentam, em vão, retomar a economia haitiana. A passagem de furacões e fortes tempestades pelo Caribe nos últimos anos só atrapalhou a recuperação.
Em abril deste ano, a ONU decidiu encerrar a missão, alegando que havia feito sua parte. As tropas deixam oficialmente o país até 15 de outubro. A partir de então, uma nova missão será criada, agora com 1275 policiais internacionais para apoiar, até 2021, o treinamento da PNH, que não é respeitada pelo povo.
“A economia só não avançou por falta de percepção das autoridades e da elite em aproveitar o momento e o que era oferecido”, diz o diplomata.
No âmbito político-diplomático, porém, considera-se que “não se pode afastar a possibilidade” de a ONU ter que voltar no futuro para o Haiti com tropas armadas de novo. Isso porque, segundo o embaixador, a situação econômica haitiana ainda é ruim, devido à diversidade demográfica concentrada na capital e a inexistência de recursos naturais.
“Muita gente no Haiti ficou acostumada a pedir e receber a solução de fora, e isso não é bom. Agora é necessário que eles trabalhem para criar instituições fortes. Como enfermeiros do Haiti, nós, diplomatas, militares e líderes políticos temos esperança. Mas continuaremos de olho”, afirmou Cordeiro.
“Espero que os partidos políticos tenham aprendido a lição de um estado democrático e ainda cabe muito a eles completar”, salientou.
Condições mínimas
Depois da convulsão social que derrubou Aristide, o Haiti realizou três eleições, todas tumultuadas, com histórico de corrupção e que precisaram da atuação de diplomatas internacionais para que a Constituição haitiana fosse respeitada.
“Caso os atores internacionais não se envolvam efetivamente para o fortalecimento das instituições haitianas em programas robustos voltados para a saúde, educação, saneamento básico, de forma para gerar emprego, condições mínimas de sobrevivência econômica no país de longo prazo, vamos voltar para o Haiti dentro de 10 anos. Porque é isso que efetivamente segura a estabilidade de um país: condições mínimas de sobrevivência, de instituições, de alternância política”, avalia o professor de relações internacionais das Faculdades Integradas Rio Branco, Peterson Rosa.