No meio do caos que acomete a saúde pública no estado, o secretário da pasta ilustrou o problema de um hospital usando um ditado, “Essa unidade parece cachorro que tem dois donos”, a sabedoria popular diz mesmo é o seguinte: “Cachorro que tem dois donos, morre de fome”.
Lembrei-me de Bob, ele hoje tem dois donos, já teve outros, nunca pertenceu apenas a um, daí talvez a explicação para seu comportamento agitado. Ele sofre com as partidas, cobra a permanência dos amores, sente medo do sumiço permanente daqueles pelo qual seu coraçãozinho bate.
Bob nunca padeceu de fome de comida, mas se espichar o olhar é possível enxergar o quanto há de carências nessa situação e de verdade na afirmativa de que não devemos pertencer a donos distintos, os triângulos amorosos são arriscados e só servem mesmo ē de inspiração para as artes.
A vida dupla a que está submetido, num vai e vem constante, sempre com a emoção trocando de lugar, num eterno ciclo de comemoração e despedida, torna ele frágil em relação as partidas, ele chora, se emociona e sofre.
Tendo percorrido mais da metade do caminho que me cabe, eu seria uma tonta se já não soubesse que podemos amar muito e o quanto isso permite de felicidade, com a condição de que não haja disputa entre cada um dos amores, por isso me esforço para ser para ele apenas mais um afeto, sem desejar a exclusividade de sua atenção.
O coração não sabe criar limites para conter sentimentos, daí quando nos deparamos com duas possibilidades distintas de dono, haver tanta dificuldade em separar por hierarquia ou vantagem a quem pertencer.
Aqui ele é paparicado, mas é lá que ele se sente em casa, eu o recebo com festa e saudade, mas é lá que está o amor de toda uma vida. Minha rotina está cheia de lembranças, os biscoitinhos dele na despensa, o pratinho na área de serviço, já a dele, deve ser repleta de incompreensões.
Amores múltiplos são possíveis quando ocupam espaços distintos, amamos pais, filhos, irmãos, amigos em relações horizontais, onde não cabe disputa, sentimentos que não se encaixam com “donos”. Esses a quem queremos entregar o coração sem reservas, melhor que seja apenas um.
Bob é intenso, quando chega aqui em casa nos nossos reencontros, roda em torno de mim, se balançando todo, numa franca demonstração de felicidade, mas imediatamente parece lembrar que existe em outro lugar, uma outra pessoa a quem ele também deseja pertencer e nessa mistura ele reage arisco, como que testando se conseguimos amá-lo apesar de tudo.
Amores divididos são fecundos para inspiração na literatura, teatro e cinema. Bob sente o coração dividido, a verdadeira dona fica entre certezas e incerteza de que será sempre escolhida e eu, recorro a sabedoria da história bíblica do Rei Salomão e deixo que ele se vá, sem oferecer resistência, lembrando que não se divide o “menino”.
Um cachorro qualquer com dois donos morre de fome, o hospital do estado com dois donos vive uma crise, um Bob com dois donos, segue amado, e eu, como parte desse triângulo sigo a me perguntar: qual a melhor alternativa que tenho para escrever um final com “felizes para sempre”?