Brasil

Com mais de 90% da transposição concluída, impactos ambientais no Rio São Francisco ainda são incertos

Priscylla Régia/Alagoas 24 Horas

Rio São Francisco/ Divisa Alagoas – Sergipe

A obra da transposição do Rio São Francisco está perto da conclusão após 12 anos de trabalho e 7 de atraso. O investimento estimado é de R$ 12 bilhões, segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR). O megaprojeto destina, desde o início, R$ 1 bilhão para mitigar impactos ambientais.

Pesquisadores defendem que é preciso monitoramento de longo prazo para determinar o impacto na fauna e na flora das áreas envolvidas, mas alegam que cortes de verbas públicas já estão limitando essa ação.

A transposição do Rio São Francisco, projeto do governo Lula e lançado por Ciro Gomes, é a construção de dois grandes canais (um Eixo Norte e um Eixo Leste, totalizando 477 km em obras) que levam águas desse rio essencial para o Nordeste brasileiro até outra área, tradicionalmente bem mais seca. A previsão inicial era de abastecer 12 milhões de pessoas.

Nesta edição do Desafio Natureza, o G1 resume o que já se sabe e o que falta saber sobre os impactos na região de influência do São Francisco, rio que passa por cinco estados brasileiros e, numa extensão de 2.800 km, abrange diferentes ecossistemas.

Uma longa história de degradação

No Brasil colonial, o rio hoje apelidado de “Velho Chico” era também conhecido como “Rio dos Currais”. Suas margens foram um eixo de expansão, do litoral para o centro do país, principalmente por meio de estradas e da criação de gado.

E foi aí que começaram os impactos da ação humana no São Francisco.

“Chamava-se Rio dos Currais porque vinham tocando o gado, nos séculos 17 e 18, à beira do São Francisco”, recorda o pesquisador Luiz César Pereira, coordenador do Centro de Conservação e Manejo de Fauna da Caatinga (Cemafauna), ligado à Universidade do Vale do São Francisco (Univasf). A universidade é a principal encarregada de atuar na mitigação dos impactos, também por meio do Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental (Nema).

“O gado chegava ali em Cabrobó (PE) e ia impactando o solo. Depois, com o tempo, sai o gado – o ‘pé duro’ como a gente chamava – e entra uma nova forma de pecuária que se adapta à caatinga, que são os ovinos e caprinos, que também trazem impacto, pois se alimentam da caatinga.” – Luiz César Pereira, do Cemafauna/Univasf.

Fonte de renda e esperança de prosperidade, o São Francisco ainda hoje é também foco de tensões. A competição pela água contrapõe grandes e pequenos produtores agropecuários, indústrias, comunidades ribeirinhas, pescadores, mineradores, governos, cidades e quatro barragens de usinas hidrelétricas (Três Marias, Sobradinho, Itaparica e Paulo Afonso). Alguns recebem mais água do que outros, alguns pagam mais pela água do que outros e alguns são mais beneficiados ou prejudicados pela transposição do que outros.

Nessa disputa, perde um bioma rico, mas naturalmente frágil: a caatinga.

“Na Mata Atlântica e na Amazônia, se eu cortar a vegetação você vê, aos poucos, um processo natural de sucessão da vegetação, de regeneração. Na caatinga falta umidade para isso”, explica Pereira.

A soma de tantas atividades em torno do São Francisco impacta as bacias ligadas a ele desde os lençóis freáticos e nascentes, onde já há relatos de água “funda”, ou seja, é preciso perfurar mais para chegar até ela. Isso ocorre também nos afluentes, os rios que alimentam o São Francisco. As barragens das hidrelétricas alagaram grandes áreas e, hoje, também controlam a vazão do rio.

Invasão do mar

Estudos mostram que, como o rio chega fraco ao mar, a água salgada já começa a invadir o São Francisco na foz – entre Sergipe e Alagoas. “O mar está entrando 40 km rio adentro. Os peixes desapareceram. Na verdade, você já encontra peixes do mar a 200 km rio acima”, conta José Alves Siqueira, professor da Univasf e coordenador do Centro de Referência para Recuperação de Áreas Degradadas (Crad).

Restam incertezas, entretanto, sobre até que ponto a transposição causa ou amplia esses danos ambientais.

Rio São Francisco na região de Cabrobó (PE) — Foto: Celso Tavares/G1

Dois grandes eixos

A transposição se somou, portanto, a um cenário ambiental já complicado. “O rio já sofreu muitas intervenções ao longo os últimos 40, 50 anos”, diz César Nunes de Castro, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

“Reservatórios, hidrelétricas, principalmente do médio São Francisco até a foz do rio: tudo isso alterou totalmente o seu regime normal.”

Com a transposição, a água do rio é levada para lugares onde, antes, não chegava. A obra cria dois sistemas independentes de captação de água: são os chamados Eixo Norte e Eixo Leste (veja no mapa).

Mapa da transposição do Rio São Francisco — Foto: Aparecido Gonçalves/G1

Em nota enviada ao G1, o Ministério do Desenvolvimento Regional, responsável pelas obras, afirma que, ao todo, já foram investidos R$ 10,7 bilhões na transposição. “Com os serviços remanescentes e complementares, a previsão é que as obras sejam concluídas com investimento final de R$ 12 bilhões”, acrescenta.

As obras do Eixo Leste foram concluídas em março de 2017 e, segundo o governo federal, a água já abastece 1 milhão de pessoas. Já o Eixo Norte, ainda em construção, está 97% executado.

Esses canais captam a água entre as barragens de Sobradinho e Itaparica, no estado de Pernambuco. Por meio de estações de bombeamento, reservatórios e pequenas usinas hidrelétricas para alimentar as máquinas, eles abastecerão cidades do semiárido, do agreste pernambucano e da região metropolitana de Fortaleza.

“Esses canais são como estradas que recortam o Nordeste. Os impactos para a fauna e flora são imensuráveis”, comenta Siqueira. “Precisamos deixar de ter uma visão imediatista e ter uma visão de longo prazo. O que vamos fazer para monitorar esses impactos e mitigá-los?”

Atualmente, o Ministério do Desenvolvimento Regional dedica 38 programas aos impactos ambientais previstos pelo projeto.

Mas, mesmo entre funcionários envolvidos nesses programas, há grande incerteza sobre a continuidade da destinação de verbas públicas para monitoramento e pesquisa no São Francisco após a conclusão da obra. Neste ano, dezenas de pessoas contratadas para trabalhar nos programas do São Francisco foram demitidas por causa dos cortes de verba do governo federal.

Fluxo das águas

O impacto mais óbvio da transposição é, justamente, a retirada de água de um rio já bastante sobrecarregado, segundo Castro. “Antes das barragens, na década de 1970, a vazão do rio ao longo do ano mudava de forma mais considerável. Tinha os períodos de cheia, com inundação das margens, e, quando baixava, tinha a agricultura de várzea”, recorda o especialista em políticas públicas.

Por causa das hidrelétricas, o São Francisco já tem o seu fluxo limitado, pois elas retêm a água para poder passar com força pelas turbinas. “Principalmente Sobradinho e Três Marias seguram a vazão do rio. É uma água controlada”, diz Pereira, do Cemafauna.

Isso faz com que as comunidades que estão depois das usinas dependam totalmente do volume de água liberado por elas.

Funcionamento dos canais da transposição do São Francisco — Foto: Aparecido Gonçalves/G1

A lógica da transposição é parecida. A ideia é que a vazão de água do rio para os canais seja limitada, de modo a não prejudicar o nível normal do rio. Mas grupos envolvidos na transposição debatem e discordam entre si sobre os impactos causados pelo desvio da água.

Se, por um lado, os grandes empreendimentos trazem benefícios, levando eletricidade e água para novas partes do Nordeste brasileiro, por outro, há também o deslocamento forçado de populações e a destruição do habitat natural de animais e plantas.

José Alves Siqueira avalia que muitos dos impactos da transposição são silenciosos. “É preciso ter uma visão sistêmica do São Francisco. Priorizar as áreas de conservação da caatinga, diminuir o impacto da desertificação, garantindo a preservação da água e da biodiversidade”, diz o pesquisador.

Desmatamento, desertificação, assoreamento

Segundo o geógrafo José Antônio Vilar Pereira, membro de um grupo de pesquisa da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e autor de artigos sobre os impactos socioambientais no Eixo Leste da transposição, todo empreendimento dessa grandeza tem consequências positivas e negativas.

Entre os impactos negativos, a retirada da vegetação para a construção dos canais é um dos mais graves. “Isso por si só é um problema, pois deixa o solo desprotegido”, diz Vilar.

É possível restaurar essas áreas degradadas pela transposição? Pesquisadores do Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental (Nema) estão recompondo a vegetação nativa desde 2014 nas margens dos canais.

“Em nosso primeiro monitoramento, em maio de 2017, a maior parte das áreas onde interviemos tinha cobertura do solo inferior a 10%. Após dois anos, a maioria tinha cobertura superior a 50%. Além disso, mais de 80% das mudas que plantamos sobreviveram”, diz o coordenador do projeto, Renato Garcia Rodrigues, da Univasf.

O projeto também resgatou 270 mil plantas da caatinga na área que seria escavada para construção dos canais, de acordo com o ministério. Cerca de 14,2 toneladas de sementes de espécies nativas da caatinga foram coletadas e, deste total, 4 toneladas foram semeadas para recuperação do solo nas áreas do empreendimento e mais 5 toneladas serão até janeiro de 2020. Aproximadamente 40 mil mudas de árvores nativas já foram plantadas e outras 68,7 mil serão plantadas até março de 2020.

O assoreamento é outra consequência da retirada da vegetação na caatinga. As chuvas no semiárido são pouco frequentes, mas, quando chove, chove forte. Sem plantas, “o sedimento retirado do solo nas áreas desmatadas vai ser carregado para os canais, para os rios e principais reservatórios de água. Isso vai causar a diminuição da capacidade desses reservatórios, que precisam ser limpos com frequência”, afirma Vilar.

Biodiversidade

Com a água do São Francisco, espera-se que também peixes e outras espécies aquáticas e terrestres consigam chegar a áreas onde antes não existiam. A interação entre espécies pode ter consequências imprevisíveis sobre a biodiversidade do cerrado e da caatinga. “Só agora que o Eixo Leste está entrando em operação é que começamos a ter avaliações empíricas do que está acontecendo”, explica César Nunes de Castro, do Ipea.

Luiz César Pereira, do Cemafauna, diz que ainda é incerto, por exemplo, qual será o comportamento de aves migrantes. “Algumas aves da América do Norte vão até Minas Gerais e depois voltam. Agora elas têm dois eixos do São Francisco para entrar, e já vimos alguns bichos nos canais”, conta.

Também Vilar diz que a mudança nas características dos ecossistemas influencia fortemente as espécies. “Temos espécies que estão adaptadas a águas paradas e outras de águas correntes. A transposição pode fazer com que espécies de águas correntes tomem espaço de espécies de águas paradas”, afirma o geógrafo.

Especialistas alertam, ainda, para a difusão de espécies invasoras ao longo dos canais, algo que já está acontecendo. A algaroba, por exemplo, é uma planta peruana que foi trazida ao Nordeste nos anos de 1940, mas sua difusão ficou descontrolada. “Temos a invasão desse e de muitos outros organismos. Eles são mais flexíveis, mais resistentes e fazem uma competição química para inibir as espécies nativas”, diz José Alves Siqueira.

Para Pereira, a supressão das áreas naturais de animais é um dos impactos de maior peso, causados diretamente pela transposição (com a construção dos canais) e indiretamente (com as atividades que usam a água do São Francisco, como as grandes plantações). Por isso, diz ele, já foram resgatados quase 170 mil animais em áreas da transposição, por meio do programa do Cemafauna.

O desafio, agora, é manter os recursos para continuar o trabalho. Para o resgate de animais, por exemplo, são necessárias centenas de funcionários. “A construção da obra teve uma boa gestão, mas é preciso que essa parte da pesquisa e mitigação dos impactos nas áreas social e biológica também seja estendida”, comenta Pereira. “Não adianta monitorarmos só por mais um ano depois da conclusão da obra”, diz.