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O medo e a ducha do banheiro

Aquela duchinha do meu banheiro começou a pingar e a torneira de passagem que a fecha fica localizada em baixo de uma prateleira, em local de difícil acesso, por isso precisei me adaptar a soltar o gatilho de forma abrupta, porque assim ela “travava” e não vazava mais.

Eu sou de comportamento organizado e costumo dizer que me orgulho de não descuidar dos pequenos reparos de casa, portanto, assim que reabriram as lojas de materiais de construção, comprei outra ducha nova e fiz a troca.

Para minha surpresa, eu continuei a soltar o gatilho subitamente, como havia aprendido a fazer nos momentos em que a ducha estava com defeito.

Cada vez que solto o gatilho, repito pra mim mesma. “Não precisa ser assim, já tá consertado…”

Conto isso como forma de exemplificar como as mudanças de comportamento adquiridas na hora da necessidade são difíceis de serem esquecidas por mim, mesmo quando as coisas voltam ao normal.

Essa constatação sem sentido explica um pouco dos receios que tenho tido, pensando em como ficarei quando as coisas retornarem para próximo da normalidade, depois ter incorporado tantas novas práticas na rotina.

Nesses mais de 70 dias, em quase completa quarentena, (tenho saído para trabalhar poucos dias) eu aprendi a lavar mais as mãos, tomar mais banho, lavar roupas mesmo aparentemente limpas, mas isso não considero uma coisa fora de série, esses não são hábitos que me assustam.

Meu incomodo é outro, eu sou gregária, gosto da vida em comunidade, gosto do toque, do abraço fraterno, do aperto de mão e não sei como será me adaptar a encontrar as pessoas queridas e dizer, “e aí?”, de longe, isso me parece tão pouco…

Não me fará falta ir para shows de música sertaneja, não que eu tenha nada contra, é já não ia, mas me pergunto como será ir ao cinema com medo de adoecer? Se eu o faço exatamente para esquecer o mundo e deixar todos os problemas quietos no fundo do baú.

Vou sair dessa fase de introspeção, tendo lido mais, visto muitos filmes, séries e documentários pela TV e quase endoidado tentando acompanhar os documentos oficiais sobre a COVID, com uma certeza, a vida pode ser simples.

Não quero mais grandes aprendizados, não quero mais mudar o mundo, já me conformei com as escolhas que fiz, tanto as certas, quanto as erradas, sou o que sou.

Constatar que tenho menos tempo pela frente que os que já tive, ou que a vida é uma chama frágil, fácil de apagar, me dá o direito de carregar menos peso e valorizar mais a leveza.

Esse período tem me ajudado a comprovar que tem relações de afeto que não sofrem abalo nem nas dificuldades, que dão colo mesmo na distância e que precisam ser mantidas por uma questão de saúde mental.

Concluí que o paraíso é ter uma vida calma, dois dedos de prosa, uma lua, um momento na cozinha, um sol a iluminar, coisas possíveis até para quem um coração tolo.

Nesse tempo de isolamento eu aprendi que a cabelo mais curto pode ser lavado todo dia sem problema, que ē possível dormir bem no meio da cama, que existe formas de buscar indicações para escolha dos filmes nas plataformas de “streaming” sem ficar procurando mais que assistindo, que ficar muito tempo em casa é possível, que o isolamento remete a solidão e machuca, mas não mata por si só.

Mas não quero que isso fique impregnado no meu comportamento, não quero acreditar que segurança só é possível afastada das pessoas queridas, que seja normal comemorar aniversários sem abraços, que o mundo lá fora seja um fantasma a assombrar, que a proximidade das pessoas seja um risco.

A pergunta que tenho me feito é a seguinte: “O que terá sobrado de mim depois de mais essas dificuldades?” E temo que é resposta seja algo como, “Alguém cujo o medo ficou gravado na memória, tal qual a prática de soltar abruptamente o gatilho da ducha do banheiro”.

“Que minha solidão me sirva de companhia.
que eu tenha a coragem de me enfrentar.
que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.”
Clarice Lispector

 

Maio de 2020

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