A Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo vai apurar a conduta de um juiz que falou que não está “nem aí para a Lei Maria da Penha” e que “ninguém agride ninguém de graça” durante a audiência virtual de um processo de pensão alimentícia com guarda e visita aos filhos menores de um ex-casal.
A mulher que faz parte do processo já foi vítima do ex-companheiro em um inquérito de violência doméstica, com base na Leia Maria da Penha. E, por duas vezes, ela já precisou de medida protetiva, tendo sido atendida na Casa da Mulher Brasileira de São Paulo.
O caso foi revelado nesta quinta-feira (17) pelo site Papo de Mãe do UOL. A reportagem mostra vídeos de trechos da audiência de 3h30 realizada no dia 9 de dezembro na Vara de Família. Foi com base nessa matéria que a Corregedoria decidiu analisar as declarações do magistrado, que não teve o nome divulgado.
“O Tribunal de Justiça de São Paulo informa que o corregedor-geral da Justiça, desembargador Ricardo Mair Anafe, tomou conhecimento na noite de ontem do ocorrido e, no mesmo instante, determinou a apuração do caso”, informa nota divulgada nesta sexta-feira (18) pela assessoria de imprensa do TJ ao G1.
Na reportagem do Papo de Mãe são divulgadas algumas das declarações do juiz durante videoconferência. Também participaram da audiência um promotor e duas advogadas, uma da mulher e outra do homem.
“Vamos devagar com o andor que o santo é de barro. Se tem lei Maria da Penha contra a mãe, eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”, diz o magistrado no vídeo.
Interrompido por uma advogada, o juiz não deixa ela falar. “Eu não tô falando que esse de graça é porque a pessoa fez para provocar. De repente a pessoa que agrediu entende que a pessoa olhar pra ele de um jeito x é algo agressivo. Eu não sei o que passa na cabeça de cada um”
Em outro trecho, ele insinua que pode tirar a guarda das crianças da mãe.
“Qualquer coisinha vira Lei Maria da Penha. É muito chato também, entende? Depõe muito contra quem…eu já tirei guarda de mãe, e sem o menor constrangimento, que cerceou acesso de pai. Já tirei e posso fazer de novo”.
O juiz questiona se vale a pena a mulher manter a medida protetiva contra o ex-companheiro que a agrediu. “Ah, mas tem a medida protetiva? Pois é, quando cabeça não pensa, corpo padece. Será que vale a pena ficar levando esse negócio pra frente? Será que vale a pena levar esse negócio de medida protetiva pra frente?”
“Doutora, eu não sei de medida protetiva, não tô nem aí para medida protetiva e tô com raiva já de quem sabe dela. Eu não tô cuidando de medida protetiva.”
“Quem batia não me interessa”, diz ele.
O magistrado chega a sugerir uma reaproximação do casal dizendo que o pai das crianças pode se redimir. “O mãe, a senhora concorda, manhê, a senhora concorda que se a senhora tiver, volto a falar, esquecemos o passado…”
“Eu tenho medo”, responde a mulher .
Mas o juiz insiste e diz que a mulher não é nenhuma criança e escolheu o ex-companheiro com quem tinha um relacionamento. “Ele pode ser um figo podre, mas foi uma escolha sua e você não tem mais 12 anos.”
O G1 não conseguiu identificar o juiz e o promotor envolvidos nesse processo para comentarem o assunto. Até a publicação desta matéria a assessoria de comunicação do Ministério Público (MP) ainda não havia se posicionado sobre o caso.
A reportagem também não localizou a mulher que é parte do processo para falar. Procurada pelo G1, a advogada dela, Gabriella Nicaretta, disse que não poderia dar detalhes do caso, mas falou de maneira genérica sobre como mulheres são tratadas e se sentem quando buscam seus direitos.
“A mulher costuma ser revitimizada pelo sistema como um todo. E muitas vezes desiste de fazer a denúncia contra o seu agressor pela abordagem violenta dos agentes do estado”, disse Gabriella.
A repercussão do caso chegou ao conhecimento de diversas entidades. Uma delas é Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em São Paulo. Nesta sexta-feira (18), a advogada Ana Amélia Camargos, presidente dessa comissão, falou ao G1 sobre o caso do juiz que falou que “ninguém agride ninguém de graça”.
“Primeiro gostaria de esclarecer que esse tipo de tratamento desrespeitoso que o juiz teve a uma das partes e às advogadas não é uma média, não é comum entre os juízes. Portanto, esse juiz representa uma exceção, que não deve servir de exemplo. E ao contrário, deve ser severamente punido”, disse Ana Amélia.
De acordo com a presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, o vídeo mostra que fica evidente o machismo do juiz na maneira com a qual fala na audiência.
“Pensamento machista e reacionário”, falou Ana Amélia. “Ele acha as mulheres são objetos e que devem ser submissas a um homem. No caso, ao ex-marido da parte mulher. Ou seja, que a mulher não tem vontade própria, que a mulher não pode seguir o seu caminho, ser independente”.
De acordo com a presidente da Comissão, a luta das mulheres para igualdade de gênero, para participação das mulheres em todos os campos da sociedade ainda é longa e será dolorosa.
“É importante a diversidade em todos os seus cantos”, afirmou Ana Amélia.
Por meio de nota, a assessoria de imprensa da OAB -SP informou que a Comissão de Direitos e Prerrogativas da Ordem também acompanha o caso e pediu que o juiz esclareça o que falou.
“Oficiou o magistrado envolvido no fato, oportunizando-lhe manifestação nos autos do procedimento instaurado”, informa trecho do comunicado da OAB. “Após as devidas e regulamentares apurações, serão adotadas medidas cabíveis e necessárias para salvaguarda dos direitos e prerrogativas da mulher advogada no episódio”.