A auxiliar de enfermagem Ester Solomovici, funcionária do Hospital Saboya, na Zona Sul de São Paulo, e a mãe, Netti, eram inseparáveis e viviam uma pela outra. As duas foram mortas vítimas da Covid-19 em abril.
O relato e a história delas, marcada por superações da matriarca, que fugiu de campos de concentração nazistas, foi feito ao G1 por José Ricardo dos Santos, um dos amigos da profissional de saúde.
“Mãe e filha eram inseparáveis, viviam uma pela outra”, recorda. Elas chegaram ao Brasil no início dos anos 50.
Ricardo descreve a amiga como uma “sobrevivente, carinhosa, extremamente disciplinada, amorosa, mas triste e isolada.”
Ester morreu no dia 25 de abril, vítima da Covid-19. Dois dias antes, a mãe, Netti Solomovici, faleceu também em decorrência da doença.
José Ricardo conta que foi amigo de Estar durante quase duas décadas. Entretanto, por conta do perfil dela mais recluso, somente há cerca de dois anos conseguiu conquistar uma relação mais próxima, de intimidade.
“Imagina, por 16 anos era só se conhecer. Só depois que ela foi se abrindo, falando sobre a chegada dela ao Brasil. Ela era muito fechada, tinha poucos amigos. Mas com os amigos, era muito amorosa”, descreve.
Mãe e filha, de 89 e 69 anos, tinham mais histórias de vida do que os amigos podem relatar.
Netti nasceu em julho de 1932 na Romênia e passou vinte anos de sua vida fugindo da guerra. Na década de 40, judeus foram vítimas da Europa nazista e a estimativa é que mais de um milhão de judeus foram assassinados em Auschwitz. E foi neste período que Nett viu sua família ser separada e morta.
Aos amigos, contava que pertenceu a uma família grande, com muitos irmãos, e que todos foram levados para campos de concentração. Ela foi forçada a trabalhar cuidando de feridos e seus irmãos foram mortos.
Aos 18 anos, ela conseguiu fugir para uma propriedade rural comunitária em Israel. No local, conheceu o marido, se casou e engravidou.
Nos quatro anos seguintes ao casamento, eles seguiram em rota de fuga e passaram por cidades da França, Alemanha e Itália.
Após viverem um tempo na Europa, em janeiro de 1954, os três chegaram ao Brasil. Eles moraram no Bom Retiro, região central de São Paulo.
Na capital paulista, tiveram muitas dificuldades para se manter e foram assistidos pelas associações judaicas Unibes e Ten Yad, que deram cursos e financiaram a alimentação.
Em 1968, o marido, que desenvolveu problemas psiquiátricos não diagnosticados à época, morreu. Desde então, Ester e Netti “viveram uma para a outra”, como falaram todos os amigos próximos.
Ester chegou no Brasil ao quatro anos. Ao longo da vida, fez poucos amigos e não teve filhos. Mãe e filha trabalharam por décadas como secretárias bilíngues.
Aos 40 anos, Ester decidiu que queria mudar de carreira e fez um curso de auxiliar de enfermagem. Trabalhou por mais de 20 anos na Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro e, no começo deste ano, passou a trabalhar no Hospital Saboya.
José Ricardo conta que enquanto Ester era “reclusa e isolada”, Netti era “expansiva e alegre”.
“A mãe era o contrário da filha, ela era alegre. Tinha muito vocabulário e o vocabulário era perfeito. A gente ouvia sem se cansar”, relembra ele.
Segundo Ricardo, o número incontável de memórias, e a realidade tão diferente da vivida no Brasil, inicialmente, chegava a causar dúvida e estranheza nos ouvintes.
“A Ester falava umas coisas que até pareciam mentira. Mas, depois, a mãe dela contava as mesmas histórias e confirmava tudo.”
Na lembrança do amigo, a história mais marcante é sobre as estratégias de fuga da família para sobreviver.
“A Ester contou que precisou se esconder em um convento para se proteger e o pessoal do convento escondeu a Ester embaixo da saia de uma madre. Nesse dia, ela conseguiu fugir em um saco de roupa. Eram sobreviventes mesmo, sabe?”.
Em 2018, Netti sofreu um acidente e ficou acamada e debilitada. Precisou de cuidadores e isso deixou Ester ainda mais reclusa. José Ricardo lembra que precisava insistir para que Ester saísse de casa.
“Era uma luta, mas quando ela saía, parecia que ela estava vivendo em outro mundo.” Juntos, eles iam a musicais, teatros e cinemas. “Em todos esses anos que conheci Ester, nunca consegui levar ela para a praia”, lamenta o amigo.
Uma amizade que, segundo ele, era quase maternal.
“Eu sinto muito a falta dela. Ela era uma amiga que eu nunca tive, uma relação meio de mãe e filho. Quem via de fora, pensava isso mesmo. Eu sinto muita falta dela.”
Foi José Ricardo quem socorreu a Ester quando ela teve os primeiros sintomas de Covid-19.
“Eu sentia que ela estava com depressão, ela estava ainda mais quieta. No dia 20 de abril, a cuidadora da mãe dela me ligou dizendo que a Ester estava mal e que não estava falando coisa com coisa.”
Ele conta que levou a amiga para o Hospital Saboya, os médicos já suspeitaram de Covid-19 e isolaram. No dia 21 de abril, o dia seguinte à internação, Ester foi intubada. No mesmo dia, Netti manifestou os sintomas de Covid. José Ricardo também socorreu a mãe.
“Eu chamei a ambulância, ela tinha convênio. Uma hora depois que chegou no hospital, ela já foi intubada e levada para a UTI.”
Netti morreu de Covid-19 no dia 23 de abril. Ester, no dia 25 de abril.
“Eu fiquei muito apreensivo, porque eu não sabia das tradições judaicas. Eu não sabia se podia cremar, não sabia o que fazer.” Por conta dos receios, José Ricardo acionou uma das associações judaicas.
No dia 13 de maio deste ano, colegas de Ester fizeram uma manifestação em homenagem a ela, em frente ao Hospital Saboya.
“É muito triste saber que essa trabalhadora do Hospital Saboya, que morreu no dia 25 de abril, e perdeu sua mãe no dia 23, possivelmente contaminadas pela falta de proteção”, lamentou o vice-presidente do Sindsep, João Gabriel Buonavita à época.
Além da homenagem, os manifestantes pediam por equipamentos de proteção individual (EPI) e treinamento dos funcionários do hospital para lidar com os pacientes.