Durante a pandemia de covid-19, condomínios buscam informar síndicos sobre como proceder em casos de violência doméstica, que atingem, em número significativo, mulheres. Conforme avaliam especialistas em violência, as medidas de restrição estimularam debates acerca da proteção desse grupo, em específico, porque o local onde está mais vulnerável a esse tipo de crime é o próprio lar.
Somente entre fevereiro e abril deste ano, registrou-se um aumento de 431% em relatos sobre brigas entre vizinhos, que renderam 52 mil postagens no Twitter, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Desse total, 5.583 indicavam episódios de violência doméstica. Pelo mapeamento, concluiu-se que um quarto (25%) do total de relatos de brigas de casal foi publicado às sextas-feiras e mais da metade (53%) à noite ou na madrugada, entre 20h e 3h. Outra descoberta é de que as mulheres foram maioria entre os autores das postagens (67%).
O Instituto Igarapé foi outra organização engajada na causa, lançando o relatório Violência contra mulheres: Como a pandemia calou um fenômeno já silencioso. Como a questão está presente de norte a sul do país, virou foco do poder público, como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, em parceria com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), desenvolveu a campanha Sinal Vermelho. O objetivo é encorajar as mulheres vítimas a pedir ajuda em farmácias. A prefeitura de Curitiba também divulgou, este ano, uma cartilha, intitulada Prevenção e combate à violência doméstica e familiar contra a mulher em condomínios.
No estado de São Paulo, onde os casos tiveram alta de 44,9% já no primeiro mês de pandemia, entidades de administradores de condomínios têm elaborado materiais e promovido eventos para orientar moradores e síndicos. Na capital paulista, uma das entidades que abraçaram a causa foi a Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de São Paulo (AABIC), que realizou um evento para discutir o tema, em outubro.
Para o presidente da associação, José Roberto Graiche Júnior, o entendimento é de que “o papel de fiscalização e colaboração” diz respeito a toda a sociedade. Em entrevista concedida à Agência Brasil, ele contou que a temática vem sendo tratada há cerca de um ano, mas ganhou mais importância com a pandemia, sobretudo após a categoria notar que diversas esferas de governo têm lançado ações.
“A gente já tem discutido isso, vem criando procedimentos, comunicados, educando, digamos assim, a comunidade, para poder evitar todo tipo de violência doméstica”, disse. “É um papel nosso também essa comunicação, essa adequação da comunidade, que se reflete dentro do condomínio, muitas vezes.”
No Brasil, o principal instrumento legal que serve de respaldo para as mulheres vítimas de violência é a Lei nº 11.340/2006, mais conhecida como Maria da Penha. Porém, há outras iniciativas que se somam a ela.
Uma delas ainda está em tramitação, já tendo sido aprovada pelo Senado Federal. Trata-se do Projeto de Lei (PL) nº 2510/2020, que obriga moradores e síndicos de condomínios a denunciar às autoridades competentes casos de violência contra mulher que ocorram nas dependências do condomínio, incluindo os ocorridos dentro de casas e apartamentos. O projeto é de autoria da deputada federal Elcione Barbalho (MDB-PA).
Segundo a proposta, que deve passar pela Câmara dos Deputados, o dever de notificar casos se estende a agressões cometidas contra crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência. O projeto estabelece que os relatos sejam feitos ao síndico do condomínio, que terá até 48 horas para denunciar formalmente o caso à Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) ou a canais eletrônicos ou telefônicos adotados pelos órgãos de segurança pública.
Caso descumpra a medida após ter levado uma advertência, o síndico poderá perder o cargo. O morador poderá ter que pagar uma multa de até cinco vezes o valor da mensalidade do condomínio.
A advogada Alessandra Caligiuri explica que o projeto de lei segue uma tendência nacional, que já existe em algumas unidades federativas. Ela cita Rondônia, Paraná, Distrito Federal, Ceará, Minas Gerais, Acre, Maranhão, Rio Grande do Norte, Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Em Rondônia, por exemplo, a lei foi promulgada em dezembro de 2019 e determina multa que varia de R$ 500 e R$ 5 mil. Já no Acre, o valor fica entre R$ 500 e R$ 10 mil, dependendo das circunstâncias da infração, das condições financeiras do infrator e do porte do condomínio. “Infelizmente, as pessoas só sentem quando mexem no bolso”, diz Alessandra.
Para ela, tanto o síndico como os vizinhos da vítima devem se mobilizar em sua defesa. “A gente acabou levantando algumas questões para haver essa mudança de se tentar minimizar [a violência], porque, muitas vezes, a mulher que está nessa situação demora muito tempo para sair, 10, 20 anos. Ela precisa se fortalecer para conseguir. Quando denuncia, já está no ápice, quase no nível de ‘ele vai me matar’. Como acontece muito dentro da casa e tendo uma cultura machista, milenar, que está enraizada na nossa sociedade, as pessoas pensam que, em briga de marido e mulher, não se mete a colher”, afirma Alessandra, que é presidente da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Subseção Pinheiros.
Alessandra cita também as campanhas recentes que têm servido para incentivar testemunhas a denunciar e proteger as vítimas. “Não é só a mulher. A violência envolve criança, idoso, toda a família. Então, ligar pros canais de denúncia, chamar a polícia, permitir que a polícia entre no prédio para ver o que está acontecendo, porque, muitas vezes, com a policia entrando, você acaba evitando que um feminicídio ocorra”, argumenta.
Ao se consultar dados reunidos pelo FBSP, observa-se que muitas brasileiras ainda são vítimas de violência. Em 2017, o total de casos de lesão corporal dolosa (quando há intenção, por parte do agressor, de cometê-la) foi de 252.895. Nos dois anos seguintes, permaneceu quase igual. Em 2018, foi de 263.067. Já em 2019, chegou a 266.310, ou seja, uma mulher foi agredida a cada dois minutos.
Em meados de outubro, o FBSP divulgou seu anuário mais recente, no qual apresentou dados sobre a violência contra mulheres durante a crise sanitária. Uma das conclusões foi a de que os chamados para o 190, da Polícia Militar, aumentaram 3,8%, desde que a pandemia foi declarada. No total, a corporação foi chamada para socorrer vítimas mulheres 147.379 vezes, em municípios dos 12 estados avaliados pela entidade. Apesar disso, as vítimas têm tido dificuldades para ir a delegacias ou outros locais que prestam atendimento.
Somente no primeiro semestre deste ano, 648 mulheres foram vítimas de feminicídio, isto é, mortas apenas por serem mulheres. O índice registrado é 1,9% maior do que o dos primeiros seis meses de 2019.
Diversos levantamentos comprovam a relação de proximidade entre vítimas e autores da violência doméstica. Um deles foi produzido pela Câmara Técnica de Monitoramento de Homicídios e Feminicídios (CTMHF), órgão subordinado à Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF). Divulgado em março de 2019, o estudo apontou que 58,8% das vítimas de feminicídios cometidos em naquele ano eram casadas com os agressores (https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-04/df-metade-das-vitimas-de-feminicidio-era-casada-com-agressor). Além disso, em 23,5% dos casos, eles já haviam se relacionado dessa forma, estando já separados no momento do crime.
O FBSP também faz um alerta nesse sentido, destacando, no anuário de 2019, que 88,8% das vítimas foram assassinadas pelos próprios companheiros ou ex-companheiros. “A relação próxima com o algoz é apontada por diversos estudos de vitimização como característica marcante das violências de gênero. Este aspecto relaciona-se com a amplitude característica da violência contra a mulher, que incide nas relações íntimas conjugais através da dependência patrimonial e violência psicológica, por exemplo. São traços desafiadores das políticas de prevenção e proteção, pois ocorrem no seio de relações das quais se espera segurança e confiança, e que comumente estão investidas de tabus por dizerem respeito à esfera doméstica e familia”, escreve o fórum.
A Lei Maria da Penha lista cinco tipos de agressões que configuram a violência contra a mulher: a psicológica, a física, a moral, a sexual e a patrimonial. Muitas vítimas não conseguem romper o ciclo de violência, por seguir a seguinte lógica: há um aumento na tensão entre vítima e agressor, sendo que este demonstra irritação por coisas insignificantes, chegando a ter acessos de raiva. A mulher tenta acalmar o agressor e se esforça para não adotar nenhuma conduta que possa desagradar ao agressor, como se fosse sua culpa. Na segunda fase do ciclo, a explosão do agressor irrompe e toda a tensão acumulada na etapa anterior se materializa em violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial. Na última fase, chamada de “lua de mel”, o agressor se diz arrependido, tentando uma reconciliação com a vítima, que se sente confusa, pressionada e, muitas vezes, responsável pelo comportamento do agressor.