A intoxicação atingiu 29 pessoas em Belo Horizonte. Dez morreram.
Um ano depois de vir à tona o caso da contaminação de cervejas da Backer, as famílias afetadas têm ainda um longo caminho na recuperação das vítimas. Em janeiro de 2020, surgiram os primeiros casos de uma síndrome misteriosa, uma intoxicação que atingiu 29 pessoas em Belo Horizonte. Dez morreram.
As coincidências entre as vítimas marcaram o começo das investigações e cresceram com o tempo. Dez pessoas respondem criminalmente no processo, que está na Justiça – incluindo os três sócios da Backer.
Os familiares atualmente cuidam da recuperação de parentes em casa, com o agravamento da situação neste ano de pandemia. Qual a rotina de tratamentos e o que elas projetam para o futuro? Entre frustrações, a esperança é possível?
As histórias destas vítimas serão contadas por elas a partir das alucinações e delírios que tiveram quando estavam internadas na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
“Eu lembro da internação, de ir pro quarto e ir pro CTI. Dali, eu lembro de ser intubado. Durante esse período eu tive algumas alucinações, eu vivi num mundo paralelo. Com a minha esposa, a gente tinha três filhos e eu tive um período de depressão também do qual eu não conseguia sair da cama e minha esposa cuidava de tudo, dos três filhos, de toda a situação, até que eu saí desse período de depressão e a gente voltou à vida normal. Eu acordei em abril e muitas dessas coisas eu acreditava que era real”, contou Luiz Felippe Teles Ribeiro, engenheiro metalurgista.
“Quando diagnosticaram que eu estava com perfuração no intestino, eu já estava em coma. Nossa! eu vi cada coisa, eu já estava em coma, e sentindo muito a dor. Nisso eles me sedaram e estava sentindo que não ia conseguir. De repente, eu vi uma igreja andava muito ali quando era adolescente, parecia uma igreja tão bonita e vi um clarão, que era o manto de Nossa Senhora. Aqui em casa mesmo tem a imagem”, disse Luciano Guilherme de Barros, bancário.
Luciano continua lembrando: “O meu pai, minha mãe ficaram do meu lado. Minha mãe que é muito católica. Nossa Senhora me deu a mão e disse vem segura na minha mão que eu vou te salvar. E aí passou a dor, passou tudo. Quando eu acordei, já tinha feito a cirurgia. Apesar de eu ter voltado, não estava enxergando direito. Tinha uma TV no quarto, eu via tudo embaçado, aquilo ali foi passando, médico, enfermeiro, fonoaudiologia me ajudando, eu sofrendo, mas aos poucos fui recobrando”.
“Você tem uma construção de realidade toda estranha. Eu estava ligado a uma máquina, numa realidade virtual e que eu apertava um determinado botão que, depois que eu me conectava, eu não conseguia sair. Eu olhava para minha geladeira. Você está com uma jarra de água geladinha ali, você está morrendo de sede, não vai poder pegar mais. É interessante isso, como seu desejo de uma determinada coisa como a água você vai criando toda uma realidade, inclusive no sonho, para você poder lidar com aquilo”, falou Cristiano Mauro Assis Gomes, professor.
Cotidiano
“Tenho uma equipe que vem me atendendo com fisioterapia, fonoaudiologia e isso tem me ajudado bastante. Tenho infelizmente ainda algumas dificuldades, principalmente cotidiano, as coisas do dia a dia, por exemplo, escovar os dentes, passar um café. Não está sendo fácil mas é uma vida que a gente tá tentando retomar o mais próximo do normal possível” disse Luiz Felippe.
A esposa de Luiz Fellipe, a farmacêutica, Camila Massardi Demartini, relembra essa época “Agora eu sei que lá atrás, eu sentia muito a falta desse apoio dele, desse colo, desse carinho, pela perda do meu pai e hoje eu tenho isso dele. Porque quando eu estou triste, me emociono, é ele que me dá o colo que me faltou lá atrás, sabe?”.
“Eu já acolhi muita gente, mas hoje em dia eu acho que estou sendo muito acolhida e isso é tão bom. Por mais que ele tente sorri, não sorri. Então parece que é uma coisa boba ou simples para um monte de pessoa, mas vai ver a expressão do seu rosto sempre sisudo. Nunca você vai expressar por um sorriso, um simples sorriso, uma coisa tão simples e tão bonita de você ver no rosto de uma pessoa, ele não tem a oportunidade” falou a mulher do Cristiano, a psicóloga Flávia Schayer Dias, que doou um dos rins para o marido.
“Porque não desisti? Por causa da minha esposa e da minha filha, por que se não já tinha desistido há muito tempo. Quero estar junto das duas”, contou Cristiano.
A esposa do Luciano, Emília Izabel Barros, disse que precisou pedir demissão “Eu trabalhando, dormia no hospital e voltava. Pedi demissão do meu trabalho em maio, porque não tinha mais como trabalhar. Foi um ano difícil, de aprendizado”.
“Eu saí dia 3 de junho do hospital, justamente no auge da pandemia. Eu não pude sair nunca mais, porque perdi a capacidade do rim e isso me tornou uma pessoa do grupo de risco. Só saio pra fazer exames, consulta. Sem Emília para me ajudar, não sei como seria não, porque depois de 27 anos na mesma empresa, no mesmo lugar, ela pediu demissão para me acompanhar. Eu não conseguia fazer nada”, contou Luciano.
Futuro e desejo de justiça
“A minha expectativa pra um futuro que não é longo demais é que esteja novamente ligado à máquina e é importante essa perspectiva realista, sabe? Não tem como reparar, então a reparação é impossível, né? A justiça sim”, disse Cristiano.
“Eu acho que justiça é ter uma punição de acordo com o crime que a pessoa comete”, contou Flávia.
“Eu queria pelo menos se eu não conseguir voltar trabalhar, que eu tenha condição de vida para minha família. É basicamente isso, a gente está tentando levar uma vida melhor e vamos ver se depois dessa pandemia a gente consegue ficar vivo e levar adiante”, falou Luciano.
Emília conta “Estamos felizes porque ele está aqui. Hoje eu falo que ele está ótimo, considerando essa época que a gente vem no ano passado. Não foi um ano fácil, foi difícil, mas aí eu vejo que não foi um ano difícil só para mim. Vejo tanta gente, com tanta dificuldade, tanta gente querida, tanta família perdeu pessoas queridas, e a gente está aí, então, vamos agradecer, né?”.
“Me tiraram uma vida normal, eu sou apaixonado por churrasco e fazer churrasco. Atualmente eu não tenho condições de fazer churrasco. Eles me tiraram uma sequência natural da vida. Eles têm que ser justiçados por isso. Enquanto isso, eu sigo minha recuperação”, disse Felippe.
“Então eu quero só que as coisas aconteçam do jeito que sempre foram, nada além disso, que a gente possa ter paz, um descanso, sem se preocupar com o perigo, como foi esse ano todo com medo do que poderia acontecer. A gente só quer um pouco de paz mesmo. Uma praia ia cair muito bem”, falou Camila.
A TV Globo entrou em contato com a cervejaria, mas até a publicação desta reportagem, não havia retorno.