A tragédia familiar vivida pelo advogado Amaury Andreoletti ilustra o impacto emocional e também financeiro do colapso no sistema de saúde de Manaus (AM).
Andreoletti, que chegou a ficar quatro dias internado e se recuperou, viu a mãe, a irmã e o irmão serem hospitalizados simultaneamente nas últimas semanas após testarem positivo para o coronavírus.
A mãe teve alta após quase duas semanas no hospital estadual Delphina Aziz, centro de referência para tratamento de covid-19 no Estado. A irmã, que teve crises de pânico na UTI superlotada do mesmo hospital, não resistiu no último dia 13.
Quatro dias, no último domingo, foi a vez do irmão, que não havia conseguido vaga na rede pública e estava internado havia 18 dias em estado grave em um hospital particular. O valor das diárias na UTI é de R$ 10 mil.
Agora, junto ao luto da perda de dois irmãos a covid-19 em três dias, Andreoletti também lida com uma dívida de R$ 180 mil.
A internação do irmão, o ex-jogador da seleção amazonense de pôquer Victor Hugo Andreoletti, aconteceu na véspera da noite de Réveillon.
Àquela altura, 7 dos 11 hospitais particulares de Manaus já não tinham vagas e a ocupação de leitos em UTIs públicas era de quase 95%, segundo o boletim epidemiológico oficial do Estado.
“Meu irmão era o 59º na lista de espera do Estado. Ficamos aguardando, meu irmão esperando um leito, e o quadro só se agravando. No dia 30, conseguimos um leito para ele em um hospital particular. Eu tinha ido a todos os hospitais e nenhum tinha vagas. Quando essa apareceu, tivemos que fazer o esforço para colocar ele lá”, conta Andreoletti à BBC News Brasil por telefone.
Desde a internação, o advogado vinha se revezando entre idas aos hospitais onde os parentes estavam internados e formas de arrecadar fundos para o pagamento das diárias do irmão.
Pelas redes sociais, amigos e colegas de trabalho fizeram campanhas de financiamento coletivo para o custeio da dívida.
“Venho vendendo carro, imóveis. Hoje eu não tenho um aporte para fazer”, contou Andreoletti à BBC News Brasil. “Neste momento, estou chegando na casa da minha tia para deixar documentos para que ela faça um financiamento para ajudar a pagar as diárias do meu irmão.”
O desafio financeiro da família não é caso isolado na cidade.
Até o fechamento da reportagem, segundo dados oficiais, apenas 6 dos 324 leitos privados de UTI destinados ao tratamento da doença estavam disponíveis.
Na rede estadual, a situação era similar: 7 leitos de UTI livres, de um total de 368.
Segundo relatos de médicos e pacientes ouvidos ao longo das últimas semanas pela BBC News Brasil, hospitais da rede privada do município têm cobrado antecipadamente das famílias de pacientes com coronavírus.
Os valores antecipados variam entre R$ 50 mil e R$ 100 mil.
Junto aos preços das internações e à pressão nos corredores de hospitais, cresce também o número de mortes registradas dentro de casa em Manaus.
Em dezembro, segundo o jornal O Globo, pelo menos 213 pessoas morreram em seus lares — o dobro da média em meses anteriores.
Na última semana, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Limpeza Urbana da Prefeitura de Manaus, a média diária tem sido próxima a 30 mortes domiciliares.
Os óbitos incluem casos confirmados de covid-19 e outras doenças. Como há escassez de exames disponíveis, nem todos os mortos passam por testes para identificar a doença respiratória.
Até o fechamento desta reportagem, mais de 4,1 mil pessoas haviam morrido e mais de 232 mil testaram positivo para a doença na capital amazonense desde o início da pandemia.
Abalado, o advogado tem dado prioridade à mãe, Leide, que perdeu dois filhos menos de uma semana depois de ter sido liberada do hospital.
“Mamãe conseguiu ‘falar’ com ela por videochamada e orientou, pediu para ela ter calma, para ter fé em Deus que tudo aquilo ia passar. Nesse mesmo dia minha irmã faleceu.”
“Somos só três filhos: eu, o Victor e a Gabriela. A barra da minha mãe é muito maior que a de todos nós”, diz.
Gabriela Andreolli era produtora cultural e, como aconteceu com o irmão, sua morte gerou dezenas de homenagens em redes sociais.
“Minha irmã morreu por parada cardíaca, mas o que a levou foi o emocional. Ela estava muito nervosa, tinha crises de ansiedade que só agravavam o quadro dela”, afirma. “A situação na UTI lotada só deixa a pessoa mais nervosa.”
A peregrinação por unidades de emergência, desde a própria internação até a busca por boletins e notícias sobre os familiares nos últimos dias, trouxe ao advogado uma percepção singular sobre a gravidade da situação na capital do Amazonas.
“Tudo aqui está um caos. Tem gente morrendo por asfixia, eu presenciei quando visitei minha mãe. As pessoas já chegam em estado muito crítico e não são atendidas por que não tem vaga”, diz o advogado à reportagem. “Quando fui sepultar minha irmã tinha câmara frigorífica no cemitério. Tinha também no hospital de referência. Essa segunda onda está muito mais forte que a primeira.”
Lembrando que ainda tem tios e primos lutando contra o coronavírus, Andreoletti diz que “cada habitante de Manaus hoje tem um amigo, conhecido ou parente acometido ou que veio a óbito, coisa que não aconteceu na primeira onda”.
À reportagem o advogado ressalta que toda a família sempre respeitou orientações de médicos e cientistas para o controle da pandemia, como usar máscaras em locais públicos, lavar as mãos frequentemente, manter distância de outras pessoas e ficar em casa o máximo possível.
“Se você perguntar se todos nós estávamos juntos em festas de Natal e Ano Novo, a resposta é não”, frisa. “Foram infecções em lugares e ambientes diferentes. Mesmo tomando todo o cuidado.”
Enquanto a situação se agrava em outras partes do país, o advogado faz um apelo.
“Se pudesse aconselhar e se me ouvissem, pediria realmente que fiquem em casa. Só sair quando for extremamente necessário, quando você perde um conhecido ou um amigo que você não tem afinidade, não bate. A realidade só bate quando você perde um ente querido”, afirma.
Ele lembra que, há menos de 10 dias, festas clandestinas ainda eram frequentes em diferentes pontos de Manaus.
Diante do aumento de casos como os registrados na família do advogado no fim do ano passado, o governador Wilson Lima chegou a anunciar o fechamento de restaurantes e bares na cidade e proibição de eventos que envolvem aglomerações, como casamentos e formaturas.
Em 26 de dezembro, protestos contra a medida, incentivados por apoiadores e parlamentares bolsonaristas, foram registrados em diferentes locais da cidade.
Comerciantes e funcionários diziam que precisavam vender estoques comprados para abastecer as festas de fim de ano.
Em 28 de dezembro, sob pressão, o governador recuou e permitiu a reabertura do comércio. Uma semana depois, sob relatos de caos instalado nos hospitais, o governo obedeceu a um mandado judicial emitido a pedido do Ministério Público do Estado e suspendeu todas as atividades não essenciais.
“O pessoal só vai realmente acreditar quando acontecer, quando um familiar, uma mãe, um pai e um irmão estiverem nessa situação. E aí já pode ser tarde”, diz Andreoletti.
“Por favor, fiquem em casa.”