O médico de Clare disse que nunca havia se deparado com a condição antes. Assustada e perplexa, ela buscou respostas na internet e encontrou um grupo no Facebook com 6 mil membros criado pela AbScent, uma ONG voltada para quem perde o olfato ou paladar.
Quase todos iniciaram com anosmia decorrente da covid-19, evoluindo para parosmia.
“Os cheiros que aqueles que sofrem de parosmia mais sentem são associados a decomposição, carne podre, fezes”, diz a fundadora da AbScent, Chrissi Kelly, que montou o grupo no Facebook em junho após o que ela descreve como uma “onda” de casos de parosmia devido ao coronavírus.
As pessoas têm usado frases como “esgoto que cheira a fruta”, “lixo quente e encharcado” e “cachorro molhado fedido”.
Frequentemente, eles se esforçam para descrever o cheiro porque é diferente de tudo com que já se depararam antes e, em vez disso, acabam escolhendo palavras que expressem sua repulsa.
Cerca de 65% das pessoas com coronavírus perdem o olfato e o paladar e estima-se que cerca de 10% dessas pessoas desenvolvam uma “disfunção olfatória qualitativa”, o que significa parosmia ou uma condição mais rara, fantosmia, quando o paciente sente um cheiro que não existe.
Isso significa que até 6,5 milhões das 100 milhões de pessoas que tiveram covid-19 em todo o mundo podem agora estar sofrendo de parosmia associada à chamada covid longa (quando os sintomas da doença permanecem após o período de infecção).
Uma teoria sobre a origem dos odores horríveis sentidos por pessoas que sofrem do transtorno é que elas estão apenas sentindo alguns dos compostos voláteis que uma substância contém, e que esses odores pioram isoladamente. Sua intensidade pode até ser aumentada.
Por exemplo, o café contém compostos de enxofre que cheiram bem em combinação com todas as outras moléculas que dão ao grão seu aroma arredondado e agradável, mas não tão bom quando cheirado sozinho.
Trabalhando com várias pessoas do grupo de parosmia do AbScent no Facebook, a cientista de sabores da Universidade de Reading, na Inglaterra, Jane Parker, descobriu que carne, cebola, alho e chocolate causam rotineiramente uma reação negativa, junto com café, vegetais, frutas, água da torneira e vinho.
A maioria das outras coisas cheira mal para alguns dos voluntários, e nada cheira bem para todos eles “exceto talvez amêndoas e cerejas”.
Eles, e outros com parosmia, descrevem repetidamente alguns odores ruins, incluindo um que é químico e defumado, um que é doce e desagradável e outro descrito como “vômito”, diz Parker.
Sua pesquisa também descobriu que essas pessoas podem continuar sentindo cheiros ruins por um tempo atipicamente longo. Para a maioria de nós, o cheiro de café permanecerá em nossas narinas por alguns segundos. Para os parôsmicos, pode durar horas ou até dias.
O professor Barry Smith, líder do Consórcio Global para Pesquisa Quimiosensorial no Reino Unido, diz que outra descoberta notável é o que ele chama de “o aspecto ‘justo é ruim e o que é ruim é justo’ da parosmia”.
“Para algumas pessoas, cheiros de fraldas e de banheiro se tornaram prazeirosos – e até agradáveis”, diz ele. “É como se os resíduos humanos agora cheirem a comida e os alimentos agora cheirem a resíduos humanos.”
Então, o que causa a parosmia?
A hipótese mais aceita é que ela resulta de danos às fibras nervosas que transportam sinais de receptores no nariz para terminações (conhecidas como glomérulos) do bulbo olfatório no cérebro. Quando estes voltam a crescer – quer o dano tenha sido causado por um acidente de carro ou por uma infecção viral ou bacteriana – acredita-se que as fibras podem se reconectar à terminação errada, diz Parker.
“Isso é conhecido como fiação cruzada e significa que o cérebro não reconhece o cheiro e talvez esteja programado para pensar nele como um perigo.”
A teoria é que, na maioria dos casos, o cérebro corrigirá o problema com o tempo, mas Parker reluta em dizer quanto tempo levará.
“Como tão poucas pessoas tinham parosmia antes da covid-19, ela não era muito estudada e a maioria das pessoas não sabia o que era, então não temos dados históricos. E também não temos dados da Covid-19 porque isso pode levar anos”, diz ela.
Além de esperar que o cérebro se adapte, não há cura, embora a AbScent acredite que o “treinamento do olfato” possa ajudar. Consiste em cheirar regularmente uma seleção de óleos essenciais, um após o outro, enquanto pensa na planta de onde foram obtidos.
Clare Freer tem feito isso e diz que limão, eucalipto e cravo começaram a cheirar levemente como deveriam, embora ela não registre nada para rosa.
Alguns parósmicos adaptaram sua dieta para tornar a vida com a doença mais suportável.
Duas irmãs, Kirstie, de 20 anos, e Laura, de 18 anos, de Keighley, um vilarejo na Inglaterra, adotaram essa abordagem, embora tenham demorado um pouco para descobrir como fazê-lo e, ao mesmo tempo, viver em harmonia com os pais.
As irmãs tiveram que correr pela casa abrindo as janelas quando seus pais chegaram em casa com peixe e batatas fritas em uma ocasião, “porque o cheiro é horrível”, diz Laura. Os pais, por outro lado, estão se cansando das especiarias picantes com que as irmãs cozinham, a fim de mascarar sabores desagradáveis e fornecer o que para elas seria uma indicação de sabor – os sabores mais agradáveis são mais fracos do que costumavam ser.
“Algumas pessoas nos dizem para comermos de qualquer maneira. Nós tentamos, mas é muito difícil comer alimentos com gosto podre”, diz Kirstie. “Porque se comer, pelos próximos três dias, terei de conviver com esse cheiro vindo do meu suor. Esse é um dos cheiros mais desagradáveis, e eu sempre me sinto suja.”
Ela e Laura perceberam que os alimentos à base de plantas são mais saborosos e têm gostado de pratos como lentilha à bolonhesa e risoto de abóbora.
“A carne é um grande gatilho que agora evitamos. Encontrar boas receitas que gostamos tornou muito mais fácil de lidar,” diz Kirstie. “Tivemos que nos adaptar e mudar nossa mentalidade porque sabemos que poderíamos viver com isso por anos e anos”.
Jane Parker observa que a perda do olfato vem em uma posição bem baixa na lista de prioridades para quem está lidando com a pandemia, mas ela e Barry Smith dizem que muitas vezes isso afeta a saúde mental e a qualidade de vida.
“Só quando você perde o olfato é que percebe o quanto ele fez parte da sua experiência de vida”, diz Smith. A conexão humana, o prazer e as memórias estão todos vinculados ao cheiro, acrescenta.
“Eles [parósmicos] dizem que se sentem isolados de seu ambiente, estranhos. Eles não encontram mais nenhum prazer em comer e perdem a proximidade reconfortante de poder sentir o cheiro das pessoas que amam”.
Enquanto Clare Freer sente falta dos dias em que gostava do cheiro de seu marido quando ele saía do chuveiro, Justin Hyde de 41 anos, de Cheltenham, na Inglaterra, nunca sentiu o cheiro de sua filha nascida em março de 2020.
Justin não compareceu ao festival de corridas realizado em Cheltenham naquele mês, mas conhece pessoas que o fizeram, e pegou o vírus pouco tempo depois, perdendo o paladar e o olfato.
Em parte havia retornado em julho, mas então o café começou a cheirar estranho – e rapidamente as coisas pioraram muito.
“Quase todos os cheiros se tornaram estranhos”, diz ele. “Os ovos me causam repulsa física e não consigo desfrutar de cerveja ou vinho, pois eles têm um sabor que chamo de covid.”
Como Kirstie e Laura, ele descobriu que alguns pratos sem carne são comestíveis, incluindo curry de vegetais, mas não haverá mais idas ao pub enquanto durar sua parosmia, e nenhum café da manhã frito ou ovo ou batatas fritas.
“Todos os luxos que consideramos naturais desapareceram desde que pegamos covid”, diz ele. “Sinto que não sou mais eu.”