Maria Célia da Cunha Oliveira, de 52 anos, ficou internada durante 30 dias em Sorocaba (SP), mas não resistiu à doença. Antes de ser intubada, ela começou um diário com relatos da rotina no hospital e mensagens para os familiares.
As palavras se tornaram um refúgio para Maria Célia da Cunha de Oliveira, de 52 anos, no período em que esteve internada com Covid-19. Em um diário, ela eternizou a imensidão do amor que sentia pela família, as memórias do conforto de casa, a rotina do hospital e algumas lições para a vida.
Tudo foi registrado no diário que ela escreveu quando estava internada na enfermaria da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Éden, em Sorocaba (SP). Foram 30 dias lutando contra a doença, mas Maria Célia não resistiu e morreu no dia 28 de junho.
Ao G1, a filha dela, Mariane Alves de Oliveira, de 30 anos, contou que Maria Célia permaneceu 15 dias na UPA do Éden. Ela foi intubada no dia 12 de junho e depois foi transferida para a UTI da Santa Casa de Sorocaba. Um dia antes de a mãe ser intubada, a filha conta que teve um sonho que a ajudou a encontrar o diário.
“Eu sonhei com ela e no sonho eu vi ela, perfeitamente. Ela me disse que havia escrito para mim e que eu precisava encontrar. Eu fui na UPA do Éden, mas não entregaram nada. Fui à Santa Casa, mas só entregaram uma coberta dela. Eu mandava cartas para ela todos os dias e isso não voltou pra mim.”
O caderno apenas chegou às mãos de Mariane após a morte da mãe. Ela tentou recuperar o pertence duas vezes e, no dia 29 de de junho, disse aos funcionários do hospital que não iria sair do local se não entregassem as cartas e o diário que a mãe havia deixado.
“Depois, realmente, veio escrito assim: ‘Para Mariane’. Foi o que me confortou porque eu estava arrasada e ainda estou. A gente se confortou por ver o quão forte ela foi. Minha mãe nunca gostou de coroa de flores, ela disse que era para comprar pizza no velório, que pizza ela gostava muito. Ela foi tão forte nas palavras.”
Segundo Mariane, na primeira vez que ela fez videochamada com a mãe, ela prometeu que mandaria cartas todos os dias, que foi um pedido feito pela mãe. Ao todo, a filha enviou 17 cartas, fotos dos filhos, desenhos, tudo para acalentar o coração diante da saudade que a distância provocava.
“Minha mãe era muito fechada, ela nunca escreveu, até em rede social nunca teve hábito de escrever. Ela mais falava, mandava áudio, mas escrever era raro e escrever dessa maneira que ela escreveu. Se eu não tivesse sonhado eu nem iria imaginar.”
17 cartas foram entregues pela filha de Maria Célia durante a internação — Foto: Arquivo Pessoal
Escrita do diário
Entre as paredes do hospital e o som dos respiradores a todo instante, Maria Célia depositava no diário os sentimentos que pairavam sobre o ambiente e também no coração. Em algumas vezes os relatos eram sobre a rotina, em outras eram orações. Talvez, sem ser de forma intencional, ela deixou impressões que se tornaram um testemunho do que viveu.
“Estou escrevendo agora cedo, a respiração está boa, estou conseguindo porque tem horas que nem isso consigo fazer, mas Deus é maior e vamos vencer esse mal. Meus amigos de quarto, quase todos intubados, só escuto o som do respirador e um monte de aparelhos. Essa semana vai ser revigorante, vou vencer. Cada vez que lembro o quanto é difícil respirar, lembro que usar duas máscaras para ir ao mercado não é nada”, escreveu Maria Célia no diário.
Mariane gravou um vídeo fazendo a leitura de alguns trechos do diário e enviou aos familiares.
Foram 15 páginas escritas por Maria Célia, no bloco de notas que foi entregue por Mariane. Cada capítulo começava com a data em que estava escrevendo, seguido pelo nome do funcionário do hospital que estava de plantão naquele período.
“A noite é difícil com os extubantes, só Deus, coitados dos profissionais da saúde! Não é fácil a noite aqui. Enquanto a cidade dorme, eles lutam para salvar vidas, sem muito recurso. E nós, no meio de tudo isso, então, valorizamos a noite de descanso. Obrigada senhor porque o sol já vai nascer e com ele, a esperança de dias melhores”, escreveu.
Em meio aos relatos, Maria Célia aconselha os filhos a viverem intensamente e cuidarem da família. Ela planejava como deveria ser o primeiro aniversário da neta, Helena, e falava da saudade do neto Lucas, ou “Luquinhas”, como ela o chamava.
“Superando minhas ansiedades e aprendendo a respirar. Obrigada senhor, meu Deus e meu pai Jesus, e todos os anjos e santos por mais esse aprendizado. A vida nunca mais será a mesma, vou sempre valorizar as coisas simples que vêm de graça e nem percebemos o quanto é bom e necessário. Obrigada senhor, obrigada meu pai.”
Mariane apenas soube do diário após a morte da mãe — Foto: Arquivo Pessoal
Internação
Na última vídeochamada que Maria Célia fez com a filha, ela chegou a retirar a máscara de oxigênio e disse para Mariane que ela ficar muito mais forte do que já era. No dia seguinte, ela foi intubada com a doença.
“Foram dias terríveis. É difícil a gente esquecer. Ficamos esperando o telefone para saber o boletim médico. Do outro lado da linha, só tem a voz do médico para dizer o que está acontecendo. É uma dor muito difícil. Ficamos totalmente debilitados, apenas orando para Deus para que isso passe.”
Segundo Mariane, outras três pessoas da família morreram de Covid-19 durante a pandemia. Inclusive, a prima dela, Daniele Priscila Batista, de 32 anos, que foi intubada com a doença um dia depois da morte de Maria Célia.
Além disso, uma das pessoas da família que não resistiu à doença em outubro do ano passado foi a irmã de Maria Célia, Aparecida Marcelino da Cunha. Ambas eram muito próximas uma da outra.
“A minha mãe teve que ser muito forte porque ela estava muito depressiva com a perda da irmã dela. O nascimento da minha filha foi o que deixou ela feliz. Na pandemia não poderia ter acompanhante, mas era o sonho dela assistir ao parto.”
‘Melhor pessoa que conheci’
Para Mariana, a mãe tinha o dom de cuidar das pessoas e se dedicou muito na educação dela, do irmão e dos netos. Durante a pandemia, Maria Célia ficou em quarentena e ajudava a filha com as crianças.
“Ela perdeu a mãe quando tinha três anos, então ela sempre se dedicou muito a ser mãe. Ela estava muito feliz com os netos. A Covid pegou a gente muito de surpresa porque não estávamos saindo pra lugar nenhum por causa do bebê [Helena], mas infelizmente o vírus está em todo lugar.”
A sobrinha de Maria Célia, Marcia Regina da Cunha, de 42 anos, conta que sente muita falta da presença da tia na vida dela e das filhas.
“Ela foi e sempre será uma das melhores amigas que a vida me deu. Aprendi e ensinei tanto com ela. Desejava que ela vivesse aos menos mais uns 100 anos para poder curtir, amar, cuidar e ser cuidada por mais anos e anos por ela e com ela. Era uma das melhores pessoas que conheci.”