Política

Crise interna, Afeganistão e conflito com China e Rússia marcam 1º ano de Biden

O presidente dos EUA, Joe Bide. Foto: Kevin Lamarque/Reuters

Em 15 de agosto de 2021, apenas três meses e meio depois de iniciar uma ofensiva militar pelo Afeganistão, o grupo radical Taleban ocupou a capital Cabul e retomou o controle do governo do país, 20 anos depois de ter sido derrubado pelos Estados Unidos na esteira do 11 de Setembro.

A volta do Taleban encerrou, também, a tumultuada ocupação norte-americana do país e sacramentou a dificuldade de quatro presidentes – George W. Bush, Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden – na missão de estruturar as bases para um governo forte e democrático no Afeganistão, sem a influência de grupos radicais.

Para Biden, a conturbada saída das tropas americanas abalou seu primeiro ano de governo interna e externamente. A narrativa de que a retirada americana foi desastrada e abriu espaço para o aumento da influência de China e Rússia no Oriente Médio tomou boa parte da opinião pública ocidental.

O antagonismo da Casa Branca com essas duas potências – e a desconfiança em relação à crescente aproximação entre chineses e russos – também foi uma das marcas de 2021 no cenário político global e representou um grande desafio para o primeiro ano da administração Biden.

A intensa competição entre EUA e China, em particular, motivou o surgimento da teoria de que o mundo vive uma “Nova Guerra Fria”, onde duas superpotências disputam influência global de forma agressiva, mas não deixam as hostilidades escalarem até um ponto de eclosão de um conflito militar.

A CNN Brasil ouviu os especialistas Ali Wyne, analista da consultoria global Eurasia Group; Leonardo Paz, cientista político do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getúlio Vargas; e Laerte Apolinário Júnior, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, para avaliar se essa tese de bipolaridade ainda faz sentido na passagem de 2021 para 2022.

Eles também comentaram a relação dos EUA com essas duas potências e analisaram o primeiro ano do governo Biden, que ainda sofreu com muitas turbulências internas.

A tentativa de reconstrução interna dos EUA

O mandato de Joe Biden foi referendado pelo Congresso norte-americano em 6 de janeiro de 2021, dia em que parte dos apoiadores de Donald Trump invadiu o Capitólio – a sede do Congresso – na capital Washington.

O ataque foi uma consequência das tumultuadas eleições presidenciais de novembro, vencidas por Biden e classificadas por Trump como “fraudulentas”.

Biden assumiu o poder em um país polarizado politicamente que estava, também, no seu pior momento da pandemia – em janeiro, os Estados Unidos chegaram a superar a marca de 4 mil mortes por dia.

Ao mesmo tempo, o democrata também adotou um discurso conciliador durante a cerimônia de posse e deixou claro que teria uma postura oposta à de seu antecessor.

Os objetivos da nova administração eram claros: conter a pandemia por meio de um plano nacional de vacinação e recuperar a economia do país. Depois de um período favorável nos primeiros seis meses, em que experimentou bons índices de aprovação interna, Biden começou a enfrentar dificuldades no segundo semestre.

“A vacinação, que estava travada na época do Trump, avançou muito rápido e permitiu uma série de liberações das restrições relacionadas à pandemia”, recorda Leonardo Paz.

“Mas esse índice de vacinados parou num patamar um pouco baixo, porque o movimento antivacina é muito forte no país. Isso fez com que o país sofresse um novo pico de contaminados no segundo semestre”, complementa o especialista da FGV.

No aspecto econômico, Biden apresentou o plano Build Back Better (“Reconstruir melhor”, em tradução livre), que envolvia uma série de investimentos em saúde, serviços sociais, energias renováveis e infraestrutura, entre outros pontos.

O plano original deu origem a três grandes projetos, sendo que dois deles foram aprovados: o primeiro, um pacote de medidas para amenizar a crise da covid-19 que custou US$ 1,9 trilhão; e o segundo, um plano de investimento de US$ 1,2 trilhão em infraestrutura e empregos, que ganhou apoio até de alguns congressistas republicanos.

O terceiro pacote, que manteve o nome Build Back Better, envolve gastos de US$ 1,9 trilhão para expandir o acesso dos norte-americanos a serviços sociais, com programas de educação, saúde e moradia, e investimento em medidas para conter as mudanças climáticas.

A medida, também chamada de Projeto de Reconciliação (“Reconciliation Bill’), foi aprovada na Câmara, mas está sendo negociada no Senado, onde a tramitação promete ser complicada – os democratas, que têm maioria na Casa por apenas uma cadeira, não contam com apoio dos republicanos e enfrentam resistência do senador centrista Joe Manchin, que é essencial para a aprovação. A crítica gira em torno do valor dos investimentos e a expectativa de aumento da inflação do país.

“Esse projeto ficou arrastado por meses muito por causa das discussões internas dos democratas”, resume Leonardo Paz. “É um pacote interessante, mas que coloca um caminhão de dinheiro e pode causar impacto significativo na inflação.”

A aprovação é vista como urgente pelos democratas, que correm o risco de perder as maiorias estreitas na Câmara e no Senado nas chamadas eleições de meio de mandato, marcadas para novembro de 2022. Caso os republicanos retomem o comando das Casas, qualquer aprovação de legislação será ainda mais tortuosa, abrindo possibilidade para uma queda maior de popularidade do presidente.

As consequências da retirada do Afeganistão

Além das adversidades no cenário interno, Biden também sofreu com crises internacionais. O caso mais emblemático foi a saída apressada do Afeganistão, onde os norte-americanos falharam em prever o avanço acelerado do Taleban pelo país e a consequente tomada de poder na capital.

“Foi uma trapalhada, um erro grave de inteligência. Acharam que o Taleban chegaria a Cabul em um mês, e chegaram em três dias”, diz Leonardo Paz.

Segundo ele, Biden foi o último presidente americano a errar na estratégia com o Afeganistão, arranhando sua imagem de especialista em política externa, cultivada em seus 12 anos como membro da Comissão de Relações Exteriores do Senado e nas duas gestões como vice de Barack Obama.

Quatro meses após a crise em Cabul, no entanto, os especialistas questionam a narrativa de que a saída do Afeganistão representa uma queda significativa da influência dos Estados Unidos no mundo e a consequente ascensão de outros players, especialmente a China, como substitutos dos americanos nesse papel.

Para Ali Wyne, da Eurasia, a visão de que os EUA sofreram um grande impacto com o revés no Afeganistão e entregaram o país “nas mãos” de China e Rússia, que buscaram algum tipo de diálogo com o Taleban logo após a tomada de Cabul, é “reducionista e binária”.

“É mais complicado do que isso. Primeiramente, é natural que, se os EUA decidem tirar a prioridade de uma região, como aconteceu no Oriente Médio, alguns competidores terão mais espaço de manobra por ali”, afirma Ali Wyne.

O especialista analisa que as dificuldades que os americanos encontraram ao longo dos anos no Oriente Médio – não só no Afeganistão, mas também no Iraque e na Síria – ajudam a explicar o motivo de a Casa Branca tirar o foco da região e se concentrar nos problemas internos do país.

Ele também contesta a visão de que a Rússia e a China têm caminho aberto para dominar o Afeganistão.

“Elas encontrarão os mesmos desafios. Rússia e China não estão imunes à constante ameaça do terrorismo e ficam alertas para a possibilidade de o país se tornar um porto seguro para grupos desse tipo”, diz ele. “Elas não vão se beneficiar com a instabilidade no Afeganistão.”

Nova Guerra Fria?

A disputa entre EUA, China e Rússia vai muito além das fronteiras do Oriente Médio e simboliza a tentativa dessas três potências de garantir uma grande zona de influência geopoliticamente.

No caso chinês, o momento é de expansão, buscando conquistar cada vez mais os mercados internos com megaprojetos como a Nova Rota da Seda.

O movimento causou incômodo nos EUA, que subiu o tom contra os métodos de Pequim, especialmente durante o governo de Donald Trump. Biden adotou uma retórica menos agressiva que o republicano, mas manteve a postura crítica aos chineses.

A disputa competitiva entre as duas forças é evidente e crescente. Isso não significa, no entanto, que a bipolaridade entre EUA e União Soviética da época Guerra Fria está se repetindo agora, com os chineses tomando o lugar da ex-superpotência comunista como arquirrival de Washington.

“O termo ‘Guerra Fria’ não se encaixa muito bem para definir essa disputa”, afirma Laerte Apolinário.

“O cenário é diferente. Não é uma ordem bipolar entre duas potências e seus aliados. Além disso, as economias de EUA e China são interdependentes; no caso da União Soviética, as relações com os Estados Unidos eram mínimas”, acrescenta o professor da PUC.

Para Leonardo Paz, a integração econômica entre EUA e China é tão grande que um eventual conflito armado entre os dois geraria um impacto imenso no sistema financeiro global.

“Os dois países são grandes parceiros comerciais. Imagine só a China fechando a produção da Apple no país por causa de um combate. Essa ideia de ‘Guerra Fria 2.0’ não faz sentido”, argumenta.

A questão Taiwan

A atual capacidade militar da China, que não foi testada em nenhum conflito em tempos recentes, também gera dúvidas sobre a possibilidade de Pequim bater de frente com Washington caso as tensões escalem a ponto de se cogitar uma guerra entre as potências.

Mas há pontos de preocupação, principalmente em relação à reivindicação chinesa sobre Taiwan, cuja autonomia é defendida pelos Estados Unidos e o mundo ocidental. No mês de outubro, a tensão entre a China e Taiwan se elevou após Pequim realizar uma série de incursões aéreas na ilha.

Leonardo Paz afirma que há uma estimativa de que a China, considerando sua atual capacidade bélica e tecnológica, consiga preparar uma operação militar para invadir Taiwan em até dez anos. A ofensiva, no entanto, seria complexa e envolveria uma missão anfíbia para atacar a ilha – que, por sua vez, teria capacidade de se defender com mísseis de médio e longo alcance. “É difícil saber quantos soldados da China desembarcariam em Taiwan em condição de batalha”, diz o especialista.

Não há certeza, também, se a China está realmente disposta a arriscar uma invasão à ilha e ficar sujeita, no melhor dos cenários, a sanções econômicas e isolamento diplomático – isso sem falar na possibilidade da retaliação militar tanto de Taiwan quanto dos Estados Unidos e outros aliados na região, como Austrália e Japão. “Poderia ser devastador para as forças militares da China”, afirma Ali Wyne.

A união entre Pequim e Moscou contra Washington

Se a China ainda tem uma clara desvantagem bélica em relação aos Estados Unidos, o mesmo não se aplica à Rússia, herdeira do arsenal da União Soviética. E as ações militares do governo Vladimir Putin, principalmente no polêmico conflito com a Ucrânia, são hoje o principal motivo de hostilidade de Moscou com a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), o braço armado dos EUA e seus aliados ocidentais.

Enquanto os EUA acusam Putin de intervir na Ucrânia e fomentar grupos rebeldes neste país, o líder russo rebate com a alegação de que os norte-americanos tentam atrair ex-repúblicas soviéticas, como Geórgia, Moldova e a própria Ucrânia, para a União Europeia e também para a Otan.

Essa hipótese posicionaria o braço armado ocidental na fronteira do território russo, uma situação que Moscou não aceita.

O impasse na Ucrânia rendeu diversas sanções econômicas dos Estados Unidos contra a Rússia nos últimos sete anos. Mas o conflito também motivou uma aproximação maior entre Moscou e Pequim, que já foram aliadas, e também oponentes, ao longo da história.

Recentemente, Xi Jinping declarou apoio às ações de Putin na Ucrânia e fez críticas à postura dos Estados Unidos, tornando ainda mais claro o cenário de alianças das duas forças contra os norte-americanos.

Apesar da preocupação constante de Washington com a aproximação entre Pequim e Moscou, Ali Wyne diz ter dúvidas sobre uma parceria mais profunda entre as duas potências, inclusive pelas hostilidades entre China e União Soviética durante um período da Guerra Fria.

“É improvável que elas formem uma grande aliança. Rússia e China querem manter uma política de liberdade de manobra em suas regiões e evitar conflitos”, afirma Ali Wyne.

Segundo Laerte Apolinário, a aproximação é vista como “ganha-ganha” no curto prazo, mas o fortalecimento chinês também é motivo de alerta para Moscou. “A Rússia se preocupa com esses megaprojetos de investimentos da China, como a Nova Rota da Seda, e ela não tem capacidade de competir. No longo prazo, a Rússia se preocupa com uma eventual subordinação em relação à China”, define.

A tendência, na visão dos especialistas, é que essas tensões continuem ao longo do tempo. Mas a disputa entre China e Estados Unidos dificilmente extrapolaria o universo diplomático para escalar a um nível onde exista a possibilidade de que uma das potências cause a destruição da outra – uma preocupação constante durante a Guerra Fria. Além disso, a dependência das superpotências em relação aos outros países é maior do que acontecia com EUA e União Soviética, o que motiva uma postura menos bélica e de maior diálogo.

“Estados Unidos e China são os dois países mais poderosos do mundo, e essa realidade deve durar por um bom tempo. Eles terão que coexistir indefinidamente”, diz Ali Wyne. “Para ganhar força, as superpotências também precisarão atrair, para si, as chamadas médias potências – Alemanha, França, Reino Unido, Rússia, Austrália, entre outros. Quanto mais exitosas elas forem nesse processo, mais vantagens elas obterão”, conclui o analista da Eurasia.