Aos 56 anos, a dona de casa Vilma Maria de Santana Marques da Silva tem um desafio pela frente: provar para a Justiça e para a polícia e dizer para o mundo inteiro que não morreu. Ela teve uma certidão de óbito expedida em seu nome e outra mulher foi enterrada como se fosse ela. O CPF foi cancelado, o marido ficou “viúvo” e surgiram problemas financeiros. Hoje, ela luta para reaver os direitos civis.
Desempregada, Vilma quer entender se houve erro ou fraude. “Estou viva e sei que não fiz nada de errado”, declarou. Com ajuda de uma advogada, ela denunciou o caso, no começo deste mês. Por nota, a Polícia Civil informou que “está investigando uma fraude”.
A Justiça disse que foi negado o pedido para o cancelamento da certidão de óbito e que o processo está em fase de “contestação”.
Para entender o caso de Vilma, é preciso voltar um pouco no tempo. Até 2020, ela vivia no bairro de Sapucaia, em Olinda, no Grande Recife. Cuidava da casa, do marido, dos filhos e netos. Ia para a igreja e participava de grupos de oração.
Com a chegada da pandemia do novo coronavírus, ela e a família precisaram aumentar a renda. Por isso, Vilma decidiu se cadastrar para receber auxílio do governo federal. Foi então que “o mundo dela caiu”, pois descobriu que a “sua própria certidão de óbito” tinha sido expedida em 1º de abril de 2018.
Ou seja, quando tentou pedir o auxílio emergencial, dona Vilma já estava “morta”, há quase dois anos. Agora, quatro anos depois do “óbito”, ela resolveu lutar para restabelecer os direitos. Hoje, vive com o marido, que, para a Justiça e toda a sociedade, é “viúvo”.
Desde que soube da “própria morte”, Vilma diz que as “coisas mudaram” e ela passou a enfrentar chacotas de algumas pessoas.
“Me chamam de morta-viva, mas não ligo. Não fiz nada para merecer isso”, desabafou.
Neste mês, Vilma constituiu uma advogada para cuidar do caso. A defensora começou a investigar a situação e entrou com recursos na Justiça para devolver a vida plena para a cliente. “Ela acredita na minha causa. Tenho muita fé em Deus”, afirmou Vilma.
Em entrevista ao g1, a advogada Inajá Lima contou detalhes do caso de Vilma e também falou sobre a dificuldade enfrentada pela cliente para resolver o problema.
“Ela foi ao cartório e disseram que não poderiam resolver nada. De fato, não podem, porque uma certidão de óbito só pode ser anulada através de uma ordem judicial”, afirmou.
Por isso, Inajá Lima começou, neste mês, a travar uma luta para, no Judiciário, ajudar Vilma. A situação é grave, conta a defensora. Vilma teve toda a documentação cancelada e não pode ter acesso a auxílios governamentais.
“Na certidão de casamento dela, já tem a averbação do atestado de óbito. E o esposo dela hoje é viúvo”, afirmou Inajá.
Além do atestado de óbito, a advogada descobriu um prontuário médico elaborado na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) de Tabajara, em Olinda. Nesse documento, consta que Vilma teria ido para uma “sala vermelha” com pacientes graves e sofrido “febre por quatro dias, mal estar e vômitos”.
No dia 21 de fevereiro de 2018, o atestado expedido pela UPA em nome de Vilma apontou a “morte” às 19h55 e disse que o óbito ocorreu “em decorrência” de “pancreatite aguda”.
A Guia de Recolhimento de Cadáver e o Boletim de Identificação do Cadáver, também emitidos pela UPA, atestaram “o óbito por pancreatite aguda”.
“Desde a hora do atendimento até a remoção do cadáver, utilizaram os dados cadastrais de Vilma. O piro é que ela nunca foi para essa UPA para ser socorrida”, declarou a advogada.
Inajá Lima informou que descobriu mais um problema ao investigar o caso. Segundo ela, dias depois da “morte” de Vilma, uma assistente social da UPA teria relatado na unidade que “a usuária estava sem documento de identificação”.
“Essa pessoa afirmou que a funerária tinha se recusado a retirar o corpo e ela ia acionar o IML [Instituto de Medicina Legal]”, disse a advogada.
Inajá Lima declarou que “foi deixado um rastro de negligência” pelos “pressupostos do estado”. Segundo a advogada, os dados da cliente foram “parar no atendimento médico” sem Vilma nunca ter estado lá”.
Depois, citou a defensora, a funcionária da remoção do suposto cadáver de Vilma teria desconfiado de problemas na identificação do cadáver. “Ela chegou a dizer que não levaria o corpo para o enterro, mas terminou levando e sem questionar nada”.
“Essa pessoa vai ao cartório e tira a certidão de óbito. Não sei quem foi. E o cartório, por sua vez, não tem o cuidado de analisar o documento”, afirmou Inajá Lima.
Depois de tudo isso, contou advogada, o cartório não certificou o CPF de Vilma, que foi cancelado, e a certidão de casamento dela teve averbação desse “óbito”.
“Existe um corpo? É uma fraude ou simplesmente o erro? Se existe corpo, quem foi enterrada no lugar de Dona Vilma? Quem é essa pessoa? Ela está desaparecida?”, questionou a advogada.
Diante de tudo, a advogada afirmou que entrou com um pedido na Justiça para cancelar a certidão de óbito irregular.
“Queremos o cancelamento do registro público do óbito dela, a retificação da certidão de casamento, porque ela nunca pediu para estar morta nem o marido dela pediu para ser viúvo”, disse a advogada.
Além disso, Inajá Lima entrou com a ação na Justiça por danos materiais e morais, uma vez que Vilma não conseguiu o auxílio emergencial e passou por privações financeiras na pandemia.
Em tom de desabafo, a advogada afirmou: “Em fevereiro de 2018, uma pessoa desapareceu e uma família pode estar procurando. Vilma está morta, mesmo estando viva. O estado precisa explicar e corrigir essa situação”, declarou.
Por meio de nota, a assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) informou que, no dia 5 de maio, a 1ª Vara da Fazenda Pública de Olinda negou o pedido de tutela provisória para que fosse declarada a nulidade da Certidão de Óbito em nome de Vilma Maria de Santana.
Também foi negado o pedido de condenação do Cartório de Registro Civil de Olinda para cancelar o Registro de Óbito. O TJPE justificou a decisão, alegando que é preciso “ter cautela”.
“É da competência da Vara Especializada de Família e Registro Civil eventuais demandas quanto ao pedido de alteração de registro civil, refutando a competência da Vara da Fazenda Pública”, declarou.
A Justiça argumentou, ainda, que “ é prematura qualquer decisão que não oportunize o resguardo ao contraditório e a ampla defesa em sua completude”.
Atualmente, o processo encontra-se em fase de contestação. Também por meio de nota, a Polícia Civil informou que investiga “um caso de estelionato/fraude”. Ainda segundo a corporação, o caso foi registrado pela vítima no dia 26 de abril deste ano, na Delegacia de Peixinhos, em Olinda.