Interceptação da Polícia Federal flagrou conversa entre Marcelo Augusto Xavier e Jussielson Silva.
Um áudio interceptado pela Polícia Federal expõe uma conversa em que o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier, oferece apoio ao servidor Jussielson Silva, que foi preso em maio por arrendar terras indígenas no Mato Grosso. O material foi divulgado primeiramente pelo jornal “O Globo” e obtido também pelo g1 nesta quinta-feira (25).
Segundo a PF, o áudio integra o relatório que investiga irregularidades no órgão de proteção aos indígenas. Silva, que atua em Ribeirão Cascalheira, a 893 km de Cuiabá, foi preso junto com um policial militar e um ex-PM. Eles são suspeitos de alugar áreas na Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante.
“Eu vou dar ciência já do caso ao corregedor lá de Mato Grosso, ao corregedor nacional da Polícia Federal aqui e já vou acionar nossa corregedoria para atuar nisso aqui. Pode ficar tranquilo”, diz Xavier no áudio.
Jussielson responde: “Eu agradeço porque a gente está na ponta da lança. O senhor é o meu apoio de fogo. O senhor me protegendo, fico mais feliz ainda”, conforme a interceptação da PF.
O presidente da Funai continua: “Pode ficar tranquilo aí que você tem toda a sustentação aqui. Pode ficar sossegado”.
O coordenador, que atua em Ribeirão Cascalheira, a 893 km de Cuiabá, foi preso na Operação Res Capta em março junto com o policial militar Gerrard Maxmiliano Rodrigues e Souza e o ex-policial militar Enoque Bento de Souza.
Os três são réus no processo. Gerrard e Enoque respondem por integrar milícia privada, sequestro qualificado, abuso de autoridade, peculato, favorecimento pessoal, usurpação de função pública na forma qualificada, porte ilegal de arma de fogo e estelionato.
Procurada, a defesa de Jussielson disse que não tinha interesse em comentar o áudio. “Trata-se de um processo complexo, o MPF acabou de denunciar os fazendeiros pedindo o pagamento de mais de 600 milhões de reais por dano ambiental. Falar a respeito só de desse áudio para defesa de Jussielson é irrelevante”, afirmou em nota.
Até a última atualização, o g1 não conseguiu contato com o presidente da Funai nem com a defesa dos outros envolvidos.
“Poder armado”
De acordo com as investigações anexadas ao processo, os réus agiam como um “poder armado” paralelo ao estado e tinha como marcas registradas o uso de vestes militares, o porte de arma de forma ostensiva e uma forte atuação denotando poder de polícia.
Os réus se valiam da intimidação por meio de ameaças e violência física ou psicológica, ainda conforme o processo.
“Foi verificado ainda que os réus praticavam a desinformação como ferramenta para encobrir e dificultar as ações dos órgãos encarregados de realizar as investigações para exercer poder sobre os indígenas, bem como manipular todos os demais envolvidos, incluindo a direção da própria Funai”, diz o documento.
Testemunhas relataram que foram ameaçadas e Gerald Maxmiliano e Enoque tinham total acesso à Funai, como se fossem servidores, e participavam de reuniões, faziam buscas em terras indígenas e recebiam representantes de outros órgãos, segundo o MP.
Também durante as investigações, exames periciais apontaram extenso dano ambiental provocado por queimadas para formação de pastagem, desmatamento e implantação de estruturas voltadas à atividade agropecuária. Em quatro dos 15 arrendamentos ilícitos, os peritos estimaram o valor para reparação do dano em R$ 58,1 mil
Fazendeiros identificados como arrendatários das terras no interior da reserva tiveram que desocupar as áreas e retirar o gado, estimado em 70 mil cabeças.
Propina
Conforme as investigações, além das propinas aos servidores, os arrendamentos geraram repasses de aproximadamente R$ 900 mil por mês ao cacique Damião Parindzané, também investigado pela Polícia Federal por suspeita de receber dinheiro em troca da concessão ilegal de áreas indígenas a fazendeiros. A caminhonete do cacique foi apreendida na operação. Segundo a polícia, ele recebeu o veículo em troca da permissão de uso da área.
Os envolvidos, na época, negociavam aumentar o valor repassado ao cacique para R$ 1,5 mil ainda neste ano.
O que diz a Funai
A Fundação Nacional do Índio (Funai) esclarece que, desde 2018, busca uma solução para o impasse envolvendo a prática de arrendamento na Terra Indígena Marãiwatsédé, localizada no Mato Grosso, em diálogo constante com o Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal sobre o tema.
Nesse sentido, cumpre destacar que o arrendamento de terras indígenas é vedado pela Constituição Federal de 1988 e que a Funai não coaduna com nenhuma conduta ilícita, tendo sua atuação pautada na legalidade, transparência, segurança jurídica, pacificação de conflitos e autonomia dos indígenas. Sendo assim, a Fundação vem trabalhando em um modelo de transição que permita superar o quadro ilegal existente na Terra Indígena Marãiwatsédé, mediante reuniões com o MPF e acionando a Polícia Federal nas situações cabíveis.
Em face de tais assuntos e para tratar de soluções na construção de um potencial Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), a Assessoria da Presidência da Funai participou de reunião com o procurador da República em Barra do Garças (MT), Everton Pereira Aguiar Araújo, em 3 de novembro da 2021. Tendo em vista o contexto da pandemia da Covid-19, a Funai priorizou as ações voltadas à segurança alimentar dos indígenas, com a entrega de cestas básicas em aldeias de Norte da Sul do país, na perspectiva de retomar as discussões acerca do TAC assim que o contexto sanitário permitisse.
Já o “Relatório de Levantamento de Dados do Território Marãiwatsédé”, de 28 de junho de 2021, elaborado pela Coordenação Regional da Funai em Ribeirão Cascalheira (MT), foi encaminhado pela Presidência da Funai ao Departamento de Polícia Federal, por meio do Ofício nº 1404/2021/PRES/FUNAI, de 17 de setembro de 2021, e, também ao procurador da República de Barra do Garças (MT), Everton Pereira Aguiar Araújo, por meio do Ofício nº 1478/2021/PRES/FUNAI, de 21 de outubro de 2021, o que demonstra a preocupação da Funai com a aparente situação de irregularidade naquela Terra Indígena, colaborando, assim, com as autoridades competentes no esclarecimento do caso. Não menos importante destacar que as ações da Funai aparentemente precederam qualquer denúncia usada como fato motivador para o desencadeamento da Operação Res Capta da Polícia Federal.
Tal relatório indica, por exemplo, que a prática do arrendamento gerava concentração de renda por parte do Cacique Damião, com coação dos demais indígenas, impedindo inclusive que fosse realizada atividade de fiscalização pela Funai. “Foi constatado também que as lideranças indígenas de T.I. Marãiwatsédé possuem quantidade considerável de armamento ilegal de calibre permitido. Dentre elas 04 espingardas no calibre 12, em média 10 pistolas semiautomáticas, modelo Glock G17 no calibre 9x19mm, vários revólveres no calibre 38, Carabinas de calibre 38 e 22”, aponta o documento. Causou estranheza, porém, que não se teve notícia de mandado de busca e apreensão à época para a apreensão deste potencial armamento.
Cabe ressaltar que a Coordenação Regional em Ribeirão Cascalheira (MT) é Unidade Gestora, com autonomia para firmar contratos, realizar licitações e propor indicações para as nomeações. A fundação esclarece também que se mantém à disposição das autoridades policiais para colaborar com as investigações e que o funcionário investigado foi exonerado do cargo em março de 2022.