Política

Orçamento, recriação de Ministério e diálogo: os desafios do próximo governo na área da Cultura

Especialistas ouvidos pelo g1 indicam quais os pontos críticos na área, que vem sendo esvaziada nos últimos anos.

Ainda que a pandemia tenha prejudicado a cultura, a menor atenção ao setor cultural é um problema que vem antes disso. Um levantamento do Ministério da Economia, no segundo semestre de 2020, indicou que as atividades artísticas, criativas e espetáculos, foram as mais prejudicadas com a Covid-19.

Agência Brasil

Fachada do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa)

Houve o “rebaixamento” do Ministério para Secretaria Especial de Cultura, seis trocas de comando e parte da classe artística sendo colocada em um campo de batalha ideológico, incentivado pelo presidente Jair Bolsonaro. Nesse contexto, segundo especialistas ouvidos pelo g1, o movimento para o próximo governo, que assume em 2023, é o de reconstrução.

“Nós tivemos um desmonte da gestão de política pública cultural, que vínhamos construindo para que tivesse a robustez que a cultura nacional merece, com o tamanho do país e sua diversidade. O cenário é de terra arrasada”, diz a professora Maria de Fátima Rodrigues Makiuchi, coordenadora geral do Observatório de Políticas Públicas Culturais da Universidade de Brasília.

“Existia um processo de enfraquecimento desde o fim do governo de Dilma Rousseff, mas com a entrada do Bolsonaro o que aconteceu foi uma ruptura absurda”, diz Wallace de Deus, antropólogo e professor de produção cultural da Universidade Federal Fluminense. “Poderíamos ter regredido muito menos.”

Os especialistas apontam quais os principais desafios para a reconstrução da gestão de políticas públicas para a cultura durante o próximo governo, de Lula:

  1. Orçamento e fomentos
  2. Recriação do Ministério da Cultura
  3. Articulação com a sociedade civil

1) Orçamento e fomentos

Apesar de a recriação de um ministério ser urgente, os especialistas apontam que o orçamento, em especial para os programas de fomento, é o desafio mais evidente. “Foi o que ficou mais difícil ao longo dos anos, independentemente do governo, e vai continuar sendo difícil”, diz Maria de Fátima.

“É uma briga que sempre teve e vai continuar tendo”, resume Luiz Gustavo Barbosa, professor da FGV, responsável pelo estudo de impactos econômicos das leis de fomento em São Paulo, entre 2020 e 2021.

“E neste momento de reconstrução, é urgente a retomada dos programas de fomento previstos em lei.”

 

A primeira briga travada, antes do início de 2023, segundo Eduardo Barata, presidente da Associação dos Produtores de Teatro, é garantir o orçamento para as leis Aldir Blac 2 e Paulo Gustavo.

Em novembro, foram anunciados os integrantes da equipe de transição de governo na área cultural. Estão no grupo nomes como a atriz Lucélia Santos, ex-ministro da Cultura Juca Ferreira, a cantora Margareth Menezes, os deputados federais Áurea Carolina, Túlio Gadêlha (Rede-PE), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Marcelo Calero (PSD-RJ) e Benedita da Silva (PT-RJ).

A primeira deve repassar R$ 3 bilhões à Cultura por cinco anos. A segunda libera R$ 3,8 bilhões do superávit do Fundo Nacional de Cultura para projetos do setor. O objetivo é evitar que o recurso desse fundo seja usado para outros fins.

A derrubada pelo Congresso do veto de Bolsonaro às duas leis de incentivo soou como um bom sinal para este próximo ano, de acordo com os especialistas. Mas apenas isso não é suficiente.

“Seria preciso avançar na consolidação do Fundo Nacional de Cultura, em que o Estado e a sociedade civil, principalmente por meio de um conselho forte e representativo, consigam direcionar os recursos para as pontas”, explica Aluízio Marino, coordenador do LabCidade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

O Fundo Nacional de Cultura é um dos três mecanismos dentro da Lei de Incentivo à Cultura. Diferentemente do benefício de isenção fiscal para as empresas em troca do apoio ou patrocínio às produções culturais, nesta modalidade, o recurso parte da União e segue direto para o projeto cultural, normalmente escolhido por meio de editais, chamadas e prêmios.

Até 2018, uma das principais fontes para alimentar esse fundo era a transferência de 3% da arrecadação bruta das loterias. O então presidente Michel Temer reduziu o valor para 1,5% ao criar um fundo nacional com as áreas de segurança pública, cultura e esporte.

“O Fundo foi pensado para amparar, apoiar, patrocinar os projetos e ações culturais que não tem apelo comercial em um primeiro momento”, explica Maria de Fátima.
Segundo ela, se já era difícil abastecê-lo com recursos significativos, com a redução, ele foi desestabilizado. “Ele é um contrapeso extremamente necessário para que a gente dê capilaridade para a Cultura.”

Esta capilaridade, explicam os especialistas, é fundamental para o desenvolvimento da cultura por conseguir sair do eixo Sudeste, onde há maior número de equipamentos culturais.

“O apoio que se faz de R$ 20 mil, R$ 30 mil, mobiliza toda uma comunidade menos urbana, gera trabalho, renda, segurança alimentar”, diz Maria de Fátima.
“Com a capilaridade você inverte a lógica dos grandes centros levando a arte para a periferia. A gente percebe a importância das expressões periféricas, e elas sendo produzidas e pautando os grandes centros”, diz o professor Wallace.

O professor lembra que para além dos projetos periféricos, equipamentos como museus dependem de auxílios de governos. “Com exceção daqueles patrocinados, como o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, esses equipamentos não se sustentam apenas com a bilheteria”, explica. “Eles entregam muito, mas não se bancam. É um desafio entender o setor cultural como uma malha.”

Há ainda outra área que viu a sua principal fonte de incentivo sumir da proposta de orçamento de 2023 enviada por Bolsonaro: o cinema. A proposta do presidente exclui Condecine, arrecadação que sustenta o Fundo Setorial do Audiovisual.

“É isso que faz o caixa do Fundo Setorial do Audiovisual, que é responsável por grande parte da produção independente”, diz a produtora Renata Magalhães, presidente da Academia Brasileira de Cinema.

A Condecine é uma contribuição para a indústria cinematográfica nacional feita pelos integrantes do cinema: quem ganha dinheiro com o setor, com salas de exibição ou concessionárias de telecomunicações, as TVs, pagam esta contribuição.

A verba recebida pode ser contingenciada e destinada a outras áreas. No entanto, no projeto de Bolsonaro renunciou a qualquer valor.

“O governo deixou a gente sem dinheiro e zerou a própria arrecadação, abriu mão da receita”, afirma Renata. Trazer de volta esta arrecadação se tornou urgente, segundo a produtora.

“É o SOS da atividade do momento: sair do zero e passar a ter qualquer número.”

2) Recriação do Ministério da Cultura

Unanimidade entre os especialistas é retornar o setor ao status de Ministério. A instituição foi “rebaixada” para Secretaria Especial de Cultura, no início do governo Bolsonaro, em um primeiro momento subordinada à pasta da Cidadania e, em seguida, à pasta de Turismo. Seis nomes passaram pelo seu comando como Roberto Alvim, Regina Duarte e Mário Frias.

“Em locais como a Europa e a América Anglo-saxônica, muitas vezes, a cultura está embutida no próprio sistema de educação. Quando se fala em educação, já abarca as questões da cultura”, explica. “No nosso caso, latino-americano, não. Dada a precariedade e as necessidades que temos na educação e as especificidades que temos na cultura, precisamos de um ministério à parte”, diz Wallace de Deus, da UFF.

A professora Maria de Fátima, da UnB, afirma que ter uma estrutura institucional é fundamental para construir uma política pública adequada e forte:

“Não se trata apenas em pensar na lei: é formular, monitorar, avaliar os impactos, fazer a gestão de recursos, tudo isso articulado com as demandas da sociedade civil e do mercado.”
Segundo ela, uma secretaria funcionaria para assuntos e grupos mais específicos da sociedade e não para a área cultural como um todo, em que precisa até dialogar com outros setores.

Para Barbosa, da FGV, a falta de um ministério permitiu o desmonte das políticas de fomento, e sua reconstrução pode mostrar a importância que a área precisa ter. “É um setor que precisa de políticas públicas de fomento, que devem estar alinhadas com as políticas públicas estaduais”, afirma.

“O que se teve foi desmonte desse alinhamento, não houve uma política nacional de cultura, e cada estado, de alguma forma, foi viabilizando suas políticas totalmente independentes. Virou uma grande colcha de retalhos.”

O professor Wallace ainda completa: para ter uma estrutura robusta, não se pode pensar que ter um ministério é gastar dinheiro. Segundo ele, no fim das contas, acaba existindo o retorno financeiro. “Não é um saco sem fundo.”

3) Articulação e diálogo com a sociedade

O terceiro desafio está na comunicação com a sociedade, no diálogo com o público. “A gente aprendeu nos últimos anos o poder que uma comunicação bem-feita, bem estruturada, tem sobre as pessoas”, afirma a professora Maria de Fátima.

“Você consegue convencer as pessoas das coisas mais absurdas. E eu creio que um dos grandes desafios do governo que virá será o de comunicar adequadamente, com clareza, o que faz, por que faz e como faz. E não é só na cultura.”

De acordo com ela, o campo da cultura tem uma particularidade porque mexe com valores e diversidade étnica, de gênero, e não pode haver margem, na hora de se comunicar, para ideias equivocadas. “E isso vale até sobre o que é uma lei de incentivo, a Lei Rouanet, as empresas que patrocinam e apoiam, mostrar o que é feito em outros países”, afirma.

Eduardo Barata, da Associação dos Produtores de Teatro, concorda que a comunicação com o público é essencial neste momento. Até para chamar as pessoas para as atividades culturais.

“A gente tem que se adequar às novas ferramentas, utilizar as redes sociais como parte”, diz Barata. “O desafio é pensar em como podemos utilizar a comunicação, essas redes sociais, de forma a derrubar fake news, fazer com a que a informação chegue ao público de forma correta, mostrar o que é o espetáculo, o que significa esse espetáculo.”

“O governo vai ter que entrar e deve se colocar nesses locais digitais, nas redes, Instagram, TikTok, o que for, de forma firme, constante, sistemática, e de forma positiva, leve e lúdica, que incida a todo momento sobre o respeito às diferenças, o que é liberdade de opinião, diferença entre público e privado”, explica Maria de Fátima.

Essa comunicação mais eficiente poderia evitar casos de cancelamento de atividades e performances, a exemplo da exposição “Queermuseu”, em 2017. Na ocasião, a mostra sobre diversidade sexual foi fechada em Porto Alegre, após protestos e ataques nas redes sociais.

“A Cultura tem um papel importante, mas não somente ela. Junto a ela, a pasta da Educação e mais algumas estratégicas precisam criar programas conjuntos que incidam sobre as diferenças, de forma leve, lúdica, sem ser professoral ou afrontosa”, diz Maria de Fátima.

Marino, do LabCidade, concorda que a diversidade precisa ser elemento central nas políticas públicas para o setor. “É a mistura cultural que pode ser exportada e gerar riqueza”, afirma. “É a partir do incentivo à produção cultural de base territorial que a gente consegue enfrentar a guerra cultural que se coloca. Precisamos ter capacidade de as pessoas reconhecerem as expressões.”

Ele lembra que o estado não pode ter a menor gerência em questões de censura, classificada por ele como retrocesso. “Não é esta a função de ministério e secretarias, estaduais ou municipais”. O caminho, segundo Marino, é “acabar com possíveis mecanismos de censura, desmontar a guerra cultural e incentivar grupos de cultura, principalmente o de cultura popular. “

“Com essa produção sendo feita no dia a dia, a gente vai ter uma transformação a longo prazo, de as pessoas compreenderem a diversidade como algo importante e não como um inimigo a ser combatido.”