Especialistas ouvidos pela CNN explicam que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não precisaria apresentar sua carteira de vacinação contra a Covid-19 para entrada nos Estados Unidos como chefe de Estado em missão oficial, de acordo com regras dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças do país (CDC na sigla em inglês).
Foi deflagrada na quarta-feira (3), pela Polícia Federal (PF), a Operação Venire, que investiga a prática de crimes na inserção de dados falsos sobre vacinação contra a doença causada pelo coronavírus nos sistemas do Ministério da Saúde (SI-PNI e RNDS). Bolsonaro teve seu celular apreendido na ocasião.
As inserções, conforme a PF, ocorreram entre novembro de 2021 e dezembro de 2022. Nesse período, o ex-chefe do Executivo esteve nos EUA por três vezes.
A professora de Direito Internacional da Universidade Presbiteriana Mackenzie Helisane Mahlke explica que, no dia 30 de dezembro de 2022, quando Bolsonaro viajou para a Flórida em seu penúltimo dia de mandato, com o avião presidencial e passaporte diplomático, a regra para entrada era a mesma das demais vezes: teste de Covid-19 negativo.
A tese é corroborada pela defesa do ex-presidente. De acordo com uma nota assinada pelos advogados Paulo Amador da Cunha Bueno, Daniel Bettamio Tesse e Fabio Wajngarten, o ex-presidente nunca recebeu qualquer imunizante contra Covid e, que, em seu mandato, “somente ingressou em países estrangeiros que aceitassem tal condição ou se dessem por satisfeitos com a realização de teste viral, procedimento adotado em diversas ocasiões”.
Segundo o professor de Direito Internacional da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Thiago Amparo, é importante diferenciar dois pontos: de um lado, o direito internacional (seguido pela lei dos EUA) determina que, embora os chefes de Estado e suas famílias tenham o dever geral de respeitar as regras locais, eles possuem imunidade para que não sejam processados em países estrangeiros em caso de violação à lei.
“Outro ponto: como ele entrou sendo chefe de Estado, não importa muito que ele não estava em visita oficial. A imunidade como chefe de Estado é ratione personae [jurisdição pessoal], ou seja, está atrelada à pessoa do chefe de Estado. Não é funcional, não depende de ele estar em uma missão oficial, que se reserva a diplomatas de menor escalão”, explica Amparo.
O vice-porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Vedant Pat, afirmou, que não iria comentar casos específicos, mas que na época em que Bolsonaro esteve no país a vacinação era obrigatória.
“Não irei comentar casos específicos, mas o que posso dizer é que naquele momento [quando Bolsonaro viajou aos EUA] havia um requerimento de estar vacinado para poder entrar nos Estados Unidos”, declarou Pat.
Entretanto, Amparo justifica que “Bolsonaro não poderia ser processado nos EUA como chefe de Estado por violar o mandato de vacina no país”. Mas, ao mesmo tempo, “falsificar documentos pode configurar crime no país de origem [Brasil]. São duas coisas diferentes”.
Mudança de visto
Em 27 de janeiro, quase um mês após sua chegada nos Estados Unidos, Bolsonaro iniciou o processo de extensão de seu visto para o de turista, a partir do término do diplomático.
Para sua obtenção é necessária a apresentação da carteira de vacinação contra a Covid-19, já que a prerrogativa de ser um chefe de Estado não estaria mais em vigor, pelo fim de seu mandato no dia 1º de janeiro, conforme especialistas.
“Ele havia entrado com o visto A1, o visto diplomático, e solicitou decorrido 30 dias que ele estava lá, porque em 30 de janeiro vencia o visto dele, o visto de turista ou visitante. Esse visto é comum, e, portanto, seria aplicado a ele as regras para qualquer pessoa comum, que seria a necessidade de apresentação de cartão de vacinação. Ele chegou a entrar com essa solicitação, ela não é automática, pode demorar de dois a quatro meses essa mudança de status”, cita a professora Helisane Mahlke.
Entretanto, o ex-presidente retornou ao Brasil no dia 29 de março, dois meses depois, antes de existir uma confirmação oficial da aceitação ou não do visto de visitante.
A professora de Direito Internacional da Universidade Católica de Brasília (UCB) e da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Priscila Caneparo questiona: “Ele alega que não foi cobrada essa carteira de vacinação. Só que aí vem a questão: não foi cobrada ou ele apresentou documento falso?”
“Mesmo que não tenha sido cobrado, como ele tem que comprovar essa carteira vacinal, existia a perspectiva, mesmo que a gente não tenha essa informação concreta”, prossegue Caneparo.
“E, daí entra a questão: se ele apresentou foi fraude, porque não pode. Prevê uma pena de 10 anos em relação à apresentação de documento falso”, avalia.
Porém, na visão de Christopher Mendonça, professor de Relações Internacionais do IBMEC de Belo Horizonte, “quando o ex-presidente mudou o título diplomático para um título de turista, não precisava necessariamente a comprovação de vacinação”.
“Evidentemente que havia nos Estados Unidos, como no Brasil, alguns lugares como teatros, cinemas, restaurantes, com potenciais aglomerações, que pediam antes da entrada essa documentação, muito provavelmente ele não esteve nesses locais.”
“No retorno dos Estados Unidos, a legislação exige que se faça um teste de Covid, que pode ser feito em laboratórios e em farmácias, atestando que você não está contaminado ou [com o vírus] ativo em seu organismo. Muito provavelmente o ex-presidente e os demais que o acompanhavam fizeram esse teste”, avançou Christopher.
Filha de Bolsonaro
Conforme uma fonte da PF informou à CNN, a filha do ex-presidente, que tem 12 anos, também teve seus dados de vacinação contra a Covid-19 alterados no sistema do Ministério da Saúde.
Os advogados de Bolsonaro justificam que ela “foi proibida de receber qualquer imunizante em razão de comorbidades preexistentes, situação sempre e devidamente atestada por médicos”.
A professora Helisane Mahlke expõe que “se ela fosse menor de 12 anos não haveria necessidade de comprovante de vacinação nem o teste PCR”.
“Agora, de 12 a 18 anos, existe essa exigência. Ela estaria na data limite. Muito provavelmente, como o visto tenha sido pedido depois, houve essa preocupação de tentar apresentar, ao que tudo indica, um cartão falsificado para a filha dele por causa dessa exigência”, prossegue.
Entenda o caso
Policiais federais realizaram busca e apreensão na casa onde Bolsonaro mora com a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, no Jardim Botânico, em Brasília. Na ocasião, foi apreendido o celular do ex-presidente.
Seu ex-ajudante de ordens, o tenente-coronel Mauro Cid foi preso.
Uma investigação da PF mostra que a conta do ex-chefe do Executivo no aplicativo ConecteSUS foi acessada em 30 de dezembro de 2022 pelo celular de Cid.
Também foram detidos Max Guilherme e o Sérgio Cordeiro, assessores de Bolsonaro que trabalhavam no Palácio do Planalto, além do secretário municipal de Saúde Duque de Caxias, João Carlos de Sousa Brecha.
O deputado federal Gutemberg Reis (MDB-RJ), que teria fraudado o cartão de vacinação, foi alvo de busca e apreensão em Duque de Caxias, sua cidade natal. Ele é irmão do ex-prefeito da cidade Washington Reis (MDB).
A CNN apurou que a cidade de Duque de Caxias se envolve na investigação porque um dos registros encontrados no sistema da Saúde sobre a vacinação de Bolsonaro foi feito em um posto de saúde do município fluminense.
No entanto, a investigação apontou que era um dado adulterado.
O que dizem as defesas
Mauro Cid
“Ainda não tivemos acesso ao inquérito, que é físico e sigiloso. Vamos declarar assim que obtivermos a cópia dos autos.”
Gutemberg Reis
“O deputado federal Gutemberg Reis (MDB-RJ) informa que colaborou integralmente com os agentes da Polícia Federal, nesta quarta, 03 de maio, que estiveram no seu gabinete em Brasília. O parlamentar recebeu todas as doses da vacina, incentivou, por meio das redes sociais, a imunização da população e colocou sua carteira de vacinação à disposição. O deputado ainda está tomando conhecimento dos detalhes das investigações da Operação Venire.”