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Caso Genivaldo: um ano após homem ser morto asfixiado pela PRF, viúva diz que filho ainda não sabe que pai foi torturado

Genivaldo Santos, esquizofrênico, foi trancado por policiais em uma viatura cheia de fumaça de gás lacrimogêneo, em Sergipe. Os três agentes acusados pela morte do motociclista estão presos, mas sem data para irem a julgamento.

Um após a morte de Genivaldo Santos, a viúva da vítima enfrenta a ausência do companheiro na rotina do filho e afirma que o menino ainda não sabe sobre os quase 12 minutos de tortura impostos ao pai, preso em uma viatura cheia de gás tóxico, antes de morrer. Na casa da mãe de Genivaldo, há choro, noites insones e espera por Justiça.

Leonoardo Barreto/g1

A viúva de Genivaldo Santos, Maria Fabiana Santos, poupou filho dos detalhes sobre a morte do pai

O homem morreu aos 38 anos após ser trancado por três policiais no porta-malas de um carro da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e forçado a inalar gás lacrimogêneo, em 25 de maio de 2022. Ele foi abordado por trafegar de moto sem capacete na BR-101 em Umbaúba, Sergipe.

As imagens do carro repleto de fumaça feitas por testemunhas repercutiram internacionalmente e, três dias depois do crime, o escritório da ONU para os Direitos Humanos na América do Sul pediu agilidade na investigação.

Os policiais envolvidos na ação, William Noia, Kleber Freitas e Paulo Rodolpho, estão presos desde 14 de outubro de 2022, e devem ir a júri popular, conforme determinação da Justiça Federal. Porém, não há previsão de quando o julgamento vai ocorrer.

Para a viúva, Maria Fabiana Santos, uma das maiores dores é perceber diariamente a falta que Genivaldo faz para o filho do casal, de 8 anos, que sempre lembra dos detalhes da rotina que mantinha com o pai.

“Ele lembra do jeito como o pai fazia o suco, do jeito dele de lavar as mãos, do que ele comprava no supermercado. São vários pequenos detalhes da rotina deles de que ele lembra”, disse.

Policiais pararam Genivaldo, que trafegava de moto, tentaram imobilizá-lo e jogaram no porta-malas da viatura em meio a fumaça tóxica.

Apesar de toda a repercussão da morte, segundo Fabiana, o menino foi poupado dos detalhes do que aconteceu com o pai.

“Ele acha que o pai foi morto a tiros. Não sabe que o pai foi torturado, essa é uma dor pela qual ele ainda vai passar, é uma dor com a qual ele ainda vai ter contato”, lamentou.

Fabiana afirma que a morte de Genivaldo deixou um “vazio” na família. “Hoje é um vazio imenso que existe dentro de mim, dentro da minha casa e dentro da minha família. A gente tinha o nosso mundo na nossa casa, e ele sempre procurava colocar o máximo de atenção e de amor em tudo. Hoje preciso ser forte pelo nosso filho, tentar suprir a falta do pai, que um ano depois percebo que é impossível de ser suprida”, disse.

Mãe de Genivaldo Santos contou que era o filho que a levava para o médico e comprava os remédios dela. — Foto: Leonardo Barreto/g1

O mesmo sentimento de saudade é dividido com Maria Vicente de Jesus, mãe de Genivaldo, que recorda o jeito companheiro do filho, da infância à vida adulta. “Na infância, ele plantava mandioca com a família, me ajudava a fazer farinha (…) bonzinho comigo e com todos os irmãos. Mesmo adulto, ele tinha a bondade de uma criança. Me levava para o médico, comprava remédio e se preocupava comigo”.

A mãe também afirma que a morte trágica do filho mudou a vida dela e da família para sempre.

“Para mim foi ontem, não tem sono que preste, não tem comida que preste. Ele morreu que nem um porco amarrado. Mataram um inocente, que não fez nada com ninguém, não tem um dia para eu não chorar”, disse a mãe.

 

Rua que Genivaldo morava com a família em Umbaúba — Foto: Joelma Gonçalves/g1

Entre os 11 irmãos, Genivaldo é lembrado como uma pessoa alto-astral. “Na adolescência, ele era divertido, alegre, gostava de festa e quando a gente queria sair era ele quem pedia para nossa mãe deixar. Adulto, ele era muito conselheiro, muito amigo. Eles não acabaram só com a vida do meu irmão, mas com a de todos nós”, afirmou a irmã Laurentina de Jesus Santos.

Embora tímido e reservado, Genivaldo chamava a atenção dos vizinhos pela educação e pelo carinho constante com o filho. “Lembro dele vendendo bilhete de rifa, sempre muito educado e prestativo com todos. O que mais me recordo é o tratamento dele com o filho, chamava a atenção, por tanto amor e carinho com o menino. Era o melhor pai”, disse a vizinha, Graziela Nascimento.

“Ele era bem-educado, uma boa pessoa com todos da região. Lembro dele passeando com o filho”, completou dona de casa Josélia Cardoso Santos, outra vizinha.

Imagem mostra momento em que Genivaldo é mantido preso dentro de porta malas de viatura da PRF cheio de gás. — Foto: TV Sergipe/Reprodução

Família quer Justiça

Mãe e irmãs de Genivaldo Santos morto em abordagem policial em Sergipe — Foto: Joelma Gonaçalves/g1

A viúva e a família, que continuam esperando por Justiça e por indenização financeira, criticaram uma carta recentemente escrita pelo policial rodoviário federal, Paulo Rodolpho, um dos presos por envolvimento na morte.

No texto, o policial afirmou que usou na abordagem os equipamentos de rotina. “Não sou perverso. Usei os equipamentos que a polícia me confiou justamente para conter a agressividade e preservar a integridade”.

Fabiana contestou a mensagem. ”Fiquei indignada porque prisão perpétua meu marido pegou. Ele está numa prisão onde eu não posso ver, onde o filho não pode ver. Abismada ainda em saber que depois de um ano, ele descreve as coisas como uma abordagem normal, uma crueldade daquelas. Uma tortura daquela, que não tem ser humano que suporte. Esperança é um sentimento que não tenho, meu filho não tem esperança de ver o pai dele. Confio que a Justiça seja feita”, disse Fabiana.

A irmã de Genivaldo, Valdenise de Jesus Santos, afirmou que espera que a Justiça seja feita. “Queremos que eles sejam condenados a pagar o que fizeram. Porque o que fizeram com ele podem fazer com qualquer pessoa. O que eles fizeram tem que pagar dentro da cadeia. Eles tinham o treinamento deles, eles sabiam o que matava e não matava. O que eles fizeram ali, fizeram para tirar a vida dele”.

Para Damarise de Jesus Santos, que viu o irmão ser torturado durante a abordagem, faltou compaixão aos policiais. Ela relatou ter dito aos agentes que Genivaldo tinha problemas de saúde, mas foi orientada a se afastar da viatura.

“Eu sinto que são três assassinos. Nenhum deles teve coração nem sentimento de dizer assim: a gente está passando dos limites, vamos maneirar um pouco porque vamos tirar a vida do rapaz. Nem que seja um, que tivesse coração. Nada eles fizeram, nenhum deles teve sentimento. Esperamos que eles sejam julgados e condenados. Não temos mais vida, mais alegria, o que temos é só tristeza e revolta”, disse.

 

Moto usada por Genivaldo no dia da abordagem era da irmã dele — Foto: Joelma Gonçalves/g1

Processos em andamento

Segundo a Justiça Federal em Sergipe, o Caso Genivaldo envolve três processos:

  • Uma ação penal movida pelo MPF referente aos crimes de tortura, abuso de autoridade e homicídio qualificado, que passou por vários trâmites foi encaminhada, no mês de abril, ao TRF da 5ª Região. De acordo com a Justiça Federal, somente depois de esgotados todos os recursos, e se confirmada a decisão de pronúncia, é que será marcado o Júri. No entanto, isso depende do resultado dos recursos;
  • Uma ação cível proposta por familiares de Genivaldo contra a União. O processo tramita em segredo de justiça por envolver menor de idade e questões familiares;
  • Uma Ação Civil Pública ajuizada pela Educafro Brasil e pelo Centro Santo Dias de Direitos Humanos contra a União. Na ação, pretende-se uma indenização por dano moral coletivo [isto é, não direcionado aos familiares de Genivaldo]. Bem como, modificações na atuação operacional da Polícia Rodoviária Federal de todo o Brasil, como o uso de câmeras corporais. O processo está suspenso a pedido das partes, para que negociem um possível acordo.

O g1 procurou a Polícia Rodoviária Federal para saber sobre o andamento do procedimento administrativo referente ao caso, mas até o fechamento da matéria não obteve retorno.

Júri popular

Acusados de matar Genivaldo Santos — Foto: Reprodução/TV Globo

O juiz Rafael Soares Souza, da 7º Vara Federal em Sergipe, determinou em janeiro deste ano que os três policiais rodoviários federais acusados da morte fossem submetidos a júri popular. Ainda cabe recurso da decisão.

Os três vão ser julgados por tortura e homicídio triplamente qualificado. A acusação de abuso de autoridade foi retirada. A Justiça determinou ainda a manutenção da prisão preventiva dos envolvidos.

Os policiais rodoviários federais foram presos preventivamente após se apresentarem à Polícia Federal (PF) em dia 14 de outubro.

A certidão de óbito apontou asfixia e insuficiência respiratória como causa da morte.

Perícia sobre o caso

A perícia feita pela Polícia Federal durante as investigações concluiu que a vítima passou 11 minutos e 27 segundos em meio a gases tóxicos, dentro de um lugar minúsculo e sem poder sair da viatura estacionada.

Com a detonação do gás lacrimogêneo, houve a liberação de gases tóxicos, como o monóxido de carbono e o ácido sulfídrico. Os peritos atestaram que a concentração de monóxido de carbono foi pequena, mas a de ácido sulfídrico foi bem maior, e pode ter causado convulsões e incapacidade de respirar.

Segundo a perícia, o esforço físico intenso e o estresse da abordagem aceleraram a respiração de Genivaldo, e isso pode ter potencializado ainda mais os efeitos tóxicos dos gases. A perícia constatou qe os gases causaram um colapso nos pulmões de Genivaldo.

Veja a cronologia:

  • Por volta das 11h do dia 25 de maio de 2022, Genivaldo foi abordado por três policiais rodoviários no km 180 da BR-101, em Umbaúba. Segundo depoimento registrado no boletim de ocorrência (BO), os agentes o pararam por não usar capacete enquanto dirigia uma motocicleta;
  • Imagens feitas por populares mostram quando os agentes pedem que ele coloque as mãos na cabeça e abra as pernas para a revista;
  • O sobrinho da vítima, Wallison de Jesus, diz que avisou aos policiais que o tio tinha transtornos mentais. Ainda de acordo com ele, os agentes encontraram uma cartela de um medicamento controlado no bolso do tio, que fazia tratamento para esquizofrenia há cerca de 20 anos. Também segundo a família, Genivaldo era aposentado em virtude dessa condição;
  • Wallison relata que o tio ficou nervoso e perguntou o que tinha feito para ser abordado. No BO, os policiais dizem que ele ficava passando a mão pela cintura e pelos bolsos e não obedecia às suas ordens e que, por isso, precisaram contê-lo. Segundo os agentes, os primeiros recursos foram spray de pimenta e gás lacrimogêneo;
  • Um vídeo mostra quando um dos agentes tenta imobilizar Genivaldo com as pernas no pescoço. No chão, ele é algemado e tem os pés amarrados;
  • Em seguida, Genivaldo é colocado no porta-malas do carro da PRF, que está com os vidros fechados. Os policiais jogam gás e fecham o compartimento. Genivaldo se debate, com os pés para fora do porta-malas, enquanto os policiais pressionam a porta;
  • No boletim de ocorrência, os policiais dizem que o homem teve um “mal súbito” no trajeto para a delegacia e foi levado para o Hospital José Nailson Moura, no município, onde morreu por volta das 13h;
  • O corpo foi recolhido pelo Instituto Médico-Legal de Sergipe e chegou a Aracaju às 16h58. Um laudo do órgão aponta que Genivaldo morreu por asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda;
  • Por volta das 18h, a Polícia Rodoviária Federal se pronunciou, informando ter aberto um procedimento para apurar o caso, que também é investigado pelas polícias Civil e Federal. O Ministério Público Federal em Sergipe também acompanha as investigações;
  • O corpo de Genivaldo foi sepultado em Umbaúba por volta das 11h do dia seguinte, 26 de maio. Ele deixou esposa e um filho e oito anos;
  • No fim da tarde, a PRF informou sobre o afastamento dos agentes envolvidos.