Sem provas e expondo a privacidade de ex-funcionárias, empregadoras fazem lista discriminatória; prática ilegal pode configurar calúnia, difamação e dano moral coletivo
“Golpista, articuladora, mentirosa, irresponsável, bipolar”, “é doida, não aceita ordens”, “mexe em tudo na casa”, “é morena, se envolve com péssimas companhias (traficantes)”, “descontrolada emocional”, “coloca a patroa na Justiça”, “macumbeira”, “tinha Tinder e outros aplicativos”, “sai falando mal da patroa”, “é suja”, “furta”, “aprontou muitas”.
Esta é uma pequena amostra de frases utilizadas por ex-patroas em uma lista ilegal que circula em grupos de Whatsapp com “motivos” pelos quais recomendam a não contratação de domésticas, babás e cuidadoras em Fortaleza.
Atualizada com frequência, a “lista suja” expõe os nomes de mais de uma centena de trabalhadoras, juntamente com dados sensíveis como RG, CPF e até o nome da mãe, naturalidade e estado civil. A versão mais recente à qual o Diário do Nordeste teve acesso é da sexta-feira, 26 de maio, e reúne 134 nomes.
Acusações de golpes, maus-tratos e roubo dividem espaço com xingamentos e com a exposição de dados, de hábitos pessoais e de supostos antecedentes criminais, sem apresentar provas e invadindo a privacidade de ex-funcionárias. “Essas pessoas podem responder por calúnia e difamação”, afirmou, em entrevista ao Diário do Nordeste, a auditora fiscal do Trabalho, Alice Silva.
Antônio de Oliveira Lima, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), classifica a construção desse tipo de lista como uma prática “inadmissível” e acrescenta que, comprovada a autoria, ela gera indenização por dano moral coletivo.
PREJUÍZOS DE ESTAR NUMA ‘LISTA SUJA’
Sem entrar no mérito das acusações feitas na lista, a auditora explica que o local certo para tomar uma atitude seria uma delegacia e não colocar num grupo do whatsapp. “Isso traz grandes prejuízos a essas trabalhadoras: uma coisa que pode nem ser verdade pode tirá-la do mercado de trabalho. É tirado o direito dessa pessoa de buscar um emprego”, explica.
O primeiro dano dessas “listas sujas” é à sobrevivência das trabalhadoras, complementa o procurador, por impactar na recolocação. Mas pode haver também impactos para a saúde mental quando ela se dá conta de que o próprio nome está circulando nos grupos de maneira negativa e não tem possibilidade de se defender. “A própria vida do empregado, a dignidade, está tudo em risco nessa prática.”
No meio disso, há ainda um rol de preconceitos destilados que não poupam sequer a liberdade religiosa das trabalhadoras. “Macumbeira”, aponta uma ex-patroa sobre uma funcionária, de forma pejorativa e logo após mencionar uma série de comportamentos indesejados.
Listas como esta são discriminatórias e ferem os direitos dessas trabalhadoras por utilizar critérios proibidos na legislação brasileira, afirma a doutora em Direito do Trabalho Ana Virginia Moreira Gomes, professora do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (Unifor).
“Até a questão da cor apareceu. (Assim como) o fato de a pessoa ter entrado na Justiça do Trabalho, de ter respondido (à patroa), como se a trabalhadora não tivesse o direito de ter voz”, complementa.
BABÁS E DOMÉSTICAS DIFAMADAS PODEM BUSCAR MINISTÉRIO
Esse tipo de lista também existe em outros lugares. Na quinta-feira, 25 de maio, a Repórter Brasil publicou uma reportagem denunciando uma delas, que contava com conteúdo difamatório contra babás e empregadas domésticas que trabalharam em condomínios de luxo em São Paulo.
Nesse caso, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) realizou uma fiscalização em quatro condomínios, durante a qual foram feitas seis autuações trabalhistas. Ao Diário do Nordeste, a auditora fiscal do Trabalho Alice Silva afirmou que o mesmo poderia ser feito em Fortaleza, caso houvesse uma denúncia formal e fosse localizado de onde partiu a lista.
“O que foi feito em São Paulo e pode ser feito aqui, ao identificar o local, é fazer uma fiscalização nesse condomínio, com todos os moradores que possuam empregadas domésticas ou babás. É indício grande de que tem irregularidades”, afirma.
Não se sabe a origem da lista que circula em grupos de patroas no Ceará, com centenas de participantes que não necessariamente moram num mesmo condomínio. Mas a auditora destaca que as trabalhadoras que forem inseridas na “lista suja” podem procurar o Ministério do Trabalho.
“É muito importante a união das trabalhadoras na unidade sindical, para ficarem mais fortes e podem procurar a Justiça no caso de calúnia e difamação, além de indenização”, reforça.
“É A FORÇA DE TRABALHO DE UM TRABALHADOR”
Com 5,8 milhões de pessoas empregadas no trabalho doméstico, a categoria representa 5,9% de toda a população ocupada no Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no último trimestre de 2022. Esse trabalho é majoritariamente exercido por mulheres, que equivale a 91,4% da classe.
Apesar de a categoria ser expressiva no Brasil, o serviço doméstico não é percebido socialmente como as outras profissões, e esses profissionais não são vistos como detentores de direitos tanto quanto os demais. Entre as reclamações das ex-patroas, a funcionária ter acionado o Poder Judiciário em busca de direitos trabalhistas é um argumento que se repete.
“‘Fala muito, gosta de conversar, usa o Tinder, tem um namorado’. É uma violação da privacidade. Elas têm que ter o poder de decidir quando, como e se toda essa informação sobre elas vai ser utilizada. (…) É algo impensado, por exemplo, em um ambiente empresarial”, afirma Ana Virginia Moreira Gomes.
Já faz dez anos, porém, que alguns dos direitos dos demais profissionais foram estendidos a essa categoria. Limitação da jornada de trabalho, recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e indenização em caso de dispensa sem justa causa foram algumas das conquistas da PEC das Domésticas, como ficou conhecida a Emenda Constitucional nº 72/2013.
Na avaliação do procurador Antônio de Oliveira Lima, com a PEC das Domésticas, houve avanços em termos de legislação, mas não na prática e na efetivação desses direitos. “Nossa sociedade ainda é muito omissa em relação à garantia de cidadania a todas as pessoas, especialmente aos empregados domésticos, em que ainda existe muita discriminação em relação a essa categoria”, afirma.
No mesmo sentido, a auditora fiscal do trabalho Alice Silva afirma que é necessário avançar, enquanto sociedade, e entender que o trabalho doméstico “é como qualquer outro”. “Há esse aspecto cultural ligado ao tempo da escravidão de que você tem que ter uma pessoa pra tomar conta da sua casa e de você, e coloca isso como trabalho menor. Mas é a força de trabalho de um trabalhador”.
Para que as condições do trabalho doméstico sejam melhoradas, Ana Virginia Moreira Gomes defende que seja repensado o valor do cuidado. “É sempre uma questão de mulheres — as empregadoras e as trabalhadoras — mas não deveria ser. Ela é essencial para todo mundo.”
Além disso, a professora afirma que, quando esse trabalho é realizado informalmente, em um contexto precário e com baixa remuneração, essas trabalhadoras tendem a ser menos profissionalizadas.
Assim, ela destaca a importância de um sistema formal de cuidado. “As famílias deveriam ter interesse nessa qualificação. São pessoas que vão fazer trabalhos muito importantes”, afirma. E os meios para se escolher uma profissional para trabalhar em casa incluem entrevista e período de experiência, por exemplo, mas não uma “lista suja”.
Listas sujas de trabalhadores são ilegais
Desde 2003, o Governo Federal publica uma “lista suja” dos empregadores que submetem trabalhadores a condições análogas à escravidão. Ao contrário daquelas que circulam por grupos de WhatsApp, essa produzida pelo Ministério do Trabalho e Previdência (MTP) é legal, prevista na Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4 de 11 de maio de 2016.
O nome e o respectivo CNPJ — ou CPF — do empregador só é inserido após a conclusão do processo administrativo que julga o auto de trabalho escravo específico. O infrator permanece no documento por dois anos.
“Não é simplesmente exposto, é preciso um processo administrativo. A lista suja das trabalhadoras domésticas é totalmente ilegal, não passa por nenhum tipo de processo administrativo ou investigação”, diferencia a auditora fiscal do Trabalho Alice Silva.
A lista suja do trabalho escravo, como é conhecida, é “uma medida de ‘vergonha’ para afetar a reputação das empresas” e para evitar um crime, pontua a doutora em Direito do Trabalho Ana Virginia Moreira Gomes. “É muito diferente da elaboração de uma lista fundada em critérios discriminatórios”, complementa.
Tanto essas listas são ilegais que, em 2014, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) aprovou a resolução nº 139 de 24 de junho de 2014, que conta com medidas que os Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) devem adotar para impedir ou dificultar o acesso automático ao nome dos empregados que constam em processos judiciais no âmbito trabalhista. O objetivo é justamente evitar a elaboração de “listas sujas” de trabalhadores que reivindicam os próprios direitos.
O procurador do Ministério Público do Trabalho Antônio de Oliveira Lima explica que, antes, era possível realizar pesquisas por processos pelo nome dos funcionários. Quando começaram a surgir denúncias de criação de “listas sujas” por parte de empresas, essas pesquisas passaram a ser proibidas e agora só quem tem o número do processo consegue acessá-lo.
Já as listas compartilhadas em WhatsApp são práticas “relativamente novas”. Mesmo que elas circulem em grupos fechados, caso essas empregadoras sejam identificadas, segundo o promotor, uma ação de reparação por danos morais por ser imputada elas por compartilhar informações que atingem a imagem das ex-funcionárias.
“Assim como também está proibido por lei que o empregador faça qualquer anotação na carteira de trabalho que possa atingir a imagem do empregado: o motivo da demissão ou qualquer fato que tenha acontecido na relação de trabalho”, complementa.