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30 anos sem Senna: Amizade do brasileiro com Fangio rendeu idolatria mútua, ‘premonição’ e até memorial na Argentina

Ayrton Senna e Juan Manuel Fangio se abraçam no pódio de Interlagos, em 1993. Créditos: Getty Images

“Ele queria ganhar mais campeonatos com carros diferentes, como fez o grande Fangio”.

A frase acima foi dita à reportagem por Jo Ramírez, coordenador da McLaren na Fórmula 1 por 17 anos e braço direito de Ayrton Senna na equipe.

O brasileiro tinha profunda admiração por Juan Manuel Fangio, lendário piloto argentino pentacampeão na década de 1950 por quatro equipes diferentes (Alfa Romero, Maserati, Mercedes e Ferrari).

Dono de três títulos pela McLaren, Senna foi em 1994 para a Williams, então escuderia “do momento”, em busca de mais campeonatos – a Ferrari seria o próximo destino do brasileiro para tentar chegar o máximo possível do recorde do argentino.

“Víamos Senna como uma pessoa que ia superar amplamente Fangio em títulos, o próprio Fangio dizia, e nós falávamos: ‘Juan, mas não. Que ele não ganhe mais, é muito jovem, vão te passar, vão te passar. Que ele não ganhe'”, contou Juan José Carli, presidente da Fundação Fangio, à ESPN.

“Fangio, quando nós dizíamos para que Senna não ganhasse porque ia superá-lo, dizia: ‘Melhor que ele me alcance e me passe, vão falar ainda mais de mim, que passou e ganhou de Fangio, senão não se lembrarão mais de mim’. Ele dizia humildemente, que lhe convinha que acontecesse. Ou seja, realmente são grandes”.

Ayrton e Juanma iniciaram contatos em 1984, quando o argentino foi assistir a um teste da Fórmula 1 em Nurburgring, na Alemanha. O brasileiro tinha acabado na estrear na categoria, e o argentino se surpreendeu com o novato. “Agora vejo por que as pessoas falavam tão bem de você”, disse o pentacampeão a Senna, segundo relata Juan José Carli.

A partir daí, ambos começaram a ter contatos, mais esporádicos do que gostariam. No seu aniversário de 80 anos em 1991, Fangio resolveu fazer uma festa para celebrá-lo em Buenos Aires e convidou piloto e ex-pilotos. Ayrton enviou uma carta agradecendo pelo convite, mas dizendo que os compromissos da McLaren na Europa dificilmente o fariam ir à Argentina.

Senna, porém, conseguiu “escapar” a Buenos Aires para encontrar o amigo em 1991 e 1992.

A reunião mais celebrada entre eles, no entanto, aconteceu no pódio do GP do Brasil de 1993 no autódromo de Interlagos. A improvável vitória do tricampeão em casa, batendo as super Williams de Alain Prost e Riccardo Patrese, tem um ar “místico”, como relembra Juan José Carli.

“No dia anterior, Senna e Fangio conversaram, e Ayrton falou: ‘Olha, Juan, o carro não anda, o carro não anda, o carro não anda, e não posso chegar à vitória’. E Fangio lhe disse: “Deus vai te ajudar, vai chover e você vai ganhar a corrida”. E no outro dia chove, e ele ganha a corrida”, começa.

“Quando Fangio vai entregar o troféu, Senna desce do pódio número 1 e diz: ‘Ninguém pode estar acima de você, Juan. Por isso desço’. E Fangio fazia o número 1, porque havia dito que ele ia ganhar. E apontava para cima e mostrava que tinha chovido. Então esse foi um momento muito bom, quase que eles caem abraçados. Era um respeito muito grande”.

Memorial
A família Carli sabe o que fala quando o assunto é Juan Manuel Fangio: o avô de Juan José foi mecânico do ex-piloto, e a amizade foi passando de geração em geração. O pentacampeão da F1 jamais esqueceu Balcarce, sua cidade-natal, e era visto como um herói por todos. Quando ia até lá, Fangio passava horas dando autógrafos e conversando com os conterrâneos.

Vivendo em Buenos Aires no fim da vida, o ex-piloto assistia de casa ao GP de San Marino em 1994 enquanto tratava dos problemas renais que, infelizmente, o vitimariam no ano seguinte. E a cena do acidente fatal de Ayrton o fez tomar uma decisão drástica.

“Eu ia visitar Fangio em sua casa em Buenos Aires até os seus últimos dias. Ele já estava realizando hemodiálise por seu problema de insuficiência renal. Estava assistindo à prova quando vê o acidente de Senna. E imediatamente ordena a todas as pessoas que estavam lá para desligar a televisão. Ele sabia que o futuro não era bom. Não quis escutar nenhum comentário, subiu para seu quarto e foi descansar”, revela Juan José Carli.

Balcarce, hoje, saúda a vida de Fangio com o museu em homenagem ao pentacampeão da F1. Lá, carros vitoriosos do filho ilustre estão em exposição nos quatro andares, mas não é só isso: há um espaço destinado a Ayrton Senna.

A Fundación Fangio gravou um vídeo especialmente para a ESPN e mostrou o memorial, feito à altura da figura do brasileiro e da amizade com o argentino.

Ali, encontra-se uma réplica da McLaren de 1989 enviada pela Marlboro; fotos dos encontros entre Senna e Fangio, uma delas com dedicatória do brasileiro; imagens e pinturas exaltando ambos; carros miniaturas e capacete do tricampeão; revistas e jornais contando a história de Ayrton; e a carta enviada por Senna em papel timbrado em resposta ao convite de Juan Manuel para o aniversário de 80 anos.

Uma homenagem épica para dois dos maiores gênios do esporte.