Entre bois e vacas, cabelos cacheados soltos ao vento, uma parede de tijolo batido ao fundo, ela cruza o chão de terra do curral com o rebolado de quem cruza uma passarela.
A cena tem algo de Juma Marruá, a icônica personagem da novela ‘Pantanal’, mas o vídeo, publicado no TikTok, foi gravado em Catunda, um pequeno município de 10 mil habitantes no interior do Ceará. E a personagem principal também é outra: a modelo trans cearense Kayla Oliveira.
Recentemente, os vídeos de Kayla fizeram sucesso nas redes sociais em perfis do Ceará. Neles, ela aparece montada a jumento, desfilando no chão de cimento queimado, passeando em meio aos arbustos da caatinga ou posando para fotos no curral dos avós.
A simplicidade do local, habitado por cerca de seis famílias, não faz Kayla abandonar a postura de modelo na hora de gravar. Seja no chão de cimento queimado ou em meio aos arbustos da caatinga, ela desfila, posa para fotos, alterna os looks e vive como na passarela.
A cearense de 27 anos, embora viva e trabalhe como modelo profissional em São Paulo, não perde a oportunidade de voltar ao pequeno povoado onde foi criada, em pleno sertão cearense.
“É um povoado bem pequeno, as coisas são bem rústicas, bem tranquilo, de poder dormir até de porta aberta”, afirma a modelo ao g1. “Não é sempre que eu consigo, mas geralmente todo final de ano é sagrado eu ir lá ver eles, todo mundo. Porque são minhas raízes, é onde me reconecto com tudo”.
Criada em um povoado no interior do Ceará, Kayla começou a perseguir o sonho de se tornar modelo após energia elétrica chegar no local, em 2009 — Foto: Reprodução
Kayla vive na capital paulista desde 2020, quando precisou deixar para trás o interior cearense para se dedicar por inteiro à carreira de modelo – que foi catapultada justamente pelos vídeos em que aparece desfilando no cenário do interior cearense.
De lá para cá, ela já posou para algumas das maiores marcas de moda do Brasil, desfilou na São Paulo Fashion Week, a maior semana de moda da América Latina; e seu rosto já estampou algumas das revistas mais importantes do setor, como a Vogue.
Hoje, as poucas casas do povoado onde Kayla passou parte da vida contam com rede elétrica e internet, mas a novidade é relativamente recente. Até 2009, o local não tinha sequer energia elétrica.
Foi com a chegada da energia que surgiu o interesse pelo universo dos manequins, das passarelas, da fotografia, da maquiagem que compõe o que se chama de moda. “Depois que eu comecei a ter acesso à internet e conhecer os comerciais de TV, eu fui me encantando por aquele mundo e decidi que queria ser modelo”, relembra Kayla.
Não foi um caminho fácil. Por morar longe de grandes centros urbanos, seu contato com as agências de modelos dependia essencialmente de e-mails. Enquanto estudava, no contraturno ajudava o pai em serviços de limpeza e de abastecimento em um posto de combustíveis.
Quando confidenciou a ele o seu sonho, obteve como resposta o apoio do pai. “Quando eu falei pra ele que queria ser modelo, ele só falou pra ir atrás. Quando falei ‘quero ir para Fortaleza porque quero ser modelo’, ele me apoiou”, afirma.
Com o apoio da família, Kayla, já adolescente, foi viver em Fortaleza com um parente. Na capital cearense, ela se assumiu enquanto mulher trans e iniciou a transição, ao mesmo tempo que procurava sua primeira agência de modelos.
“Eu pensei em desistir porque no começo, assim que eu procurei agências em Fortaleza, teve uma agência que chegou a falar pra mim que era pra escolher ou fazer minha transição ou ser modelo porque as duas coisas juntas não davam certo”, relembra.
Uma vez que encontrava dificuldades na capital cearense para se inserir no ramo, decidiu que era hora de tentar São Paulo.
“Depois da minha transição, eu procurei por uma agência em São Paulo e fui muito bem aceita pelas agências daqui (de São Paulo). Participei de um concurso, que é o The Look of the Year, que foi o concurso que descobriu a Giselle [Bundchen]”, conta.
“Não cheguei à final, mas voltei para casa, lá no interior, e de lá comecei a gravar conteúdos, fazia fotos, postava no Instagram. Como tinha algumas pessoas do meio da moda, que me conheciam desse tempo, eles ficaram me acompanhando”, explica a modelo.
Em 2020, Kayla foi convidada a ir para a capital paulista participar de uma sessão de fotografias. O convite partiu de um maquiador que acompanhava os vídeos de Kayla no TikTok. A viagem acabou se estendendo a pedido da agência de modelos, que aproveitou a presença de Kayla em São Paulo para demonstrar seu trabalho a outros clientes. A aposta funcionou.
A ida à capital paulista, prevista inicialmente para durar apenas 4 dias, acabou se estendendo até hoje. De 2020 para cá, a cearense posou para grandes empresas de vestuário e desfilou nos principais eventos de moda do país.
Hoje estabelecida na carreira de modelo, Kayla continua a produzir conteúdos para as redes sociais, tanto sobre o povoado no interior do Ceará quanto algumas curiosidades sobre o trabalho em São Paulo. Graças a isso, ela acumula alguns milhares de seguidores e de visualizações em redes como TikTok e Instagram.
Os vídeos, além de despertarem curiosidade nos seguidores, também servem para amenizar a saudade do interior. Quando volta para casa, ela divide o tempo entre os avós e o pai, responsáveis pela sua criação.
Em casa, além da família, encontra apoio. Por isso, Kayla garante que, embora ganhe a vida na cidade grande, é no pequeno povoado de sua família que ela gosta de estar. “Amo o lugar de onde sou. Então eu sempre procuro estar lá com eles novamente. E eles adoram quando eu tô lá também. Então não tem como deixar de ir”, conclui.