Plenário também decidiu que cabe ao Poder Público custear alternativas à transfusão, quando houver motivação religiosa, desde que gasto não seja desproporcional.
O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria nesta quarta-feira (25) para reconhecer que pacientes que são Testemunhas de Jeová podem, por convicção religiosa, recusar tratamentos médicos com uso de transfusão de sangue.
A recusa do tratamento, contudo, não pode ser feita, por exemplo, no caso dos pais para os filhos menores.
Esses pacientes também podem exigir do Poder Público o custeio de procedimentos específicos, sem o uso da transfusão, desde que:
Os ministros analisaram recursos que discutem a oferta de tratamento médico sem a aplicação de sangue de outras pessoas – e a possibilidade de recusa de terapias por pacientes que fazem parte da religião, caso não exista alternativa.
A religião dos Testemunhas de Jeová não permite o recebimento de transmissão de sangue de terceiros.
O debate envolve direitos fundamentais previstos na Constituição, como a saúde, dignidade da pessoa humana, legalidade, liberdade de consciência e de crença.
O que o STF discute
O Supremo analisa dois recursos que tratam de especificidades no tratamento médico de pessoas da religião Testemunhas de Jeová.
O grupo religioso entende que há passagens na Bíblia que estabelecem a necessidade de se abster de sangue. Consideram que o sangue representa a vida; por isso, evitam tomar a substância por qualquer via em obediência e respeito a Deus.
Em um dos casos, a questão é saber se um paciente nestas circunstâncias poderia recusar terapias de saúde que envolvem o uso de sangue de outras pessoas. E, se for possível a recusa, como ela deve ser feita.
Em outro, o debate envolve o papel do Poder Público diante da necessidade de custeio de tratamento específico para este grupo religioso, sem o uso de transfusões.
Casos concretos
Um dos processos, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, envolve uma paciente de Alagoas. Ela foi encaminhada para cirurgia de substituição de válvula aórtica (cirurgia cardíaca) pelo Sistema Único de Saúde.
Por ser testemunha de Jeová, decidiu fazer o procedimento sem transfusões de sangue de terceiros, assumindo os possíveis riscos.
A diretoria da Santa Casa de Misericórdia de Maceió (AL), no entanto, condicionou a realização da cirurgia à assinatura de termo de consentimento da paciente para a realização de eventuais transfusões. Ela não aceitou e o procedimento foi cancelado.
A paciente acionou a Justiça contra o Poder Público, para obter a cirurgia sem a transfusão pelo SUS. Na primeira e na segunda instância, o pedido foi negado.
A Justiça considerou que não havia garantias de que o procedimento iria ocorrer sem riscos para a paciente, se fosse da forma como solicitada por ela.
O outro caso, que tem Barroso como relator, é de um paciente do Amazonas, que buscou obter o direito de realizar uma cirurgia ortopédica em hospital público sem transfusão de sangue.
Nas instâncias inferiores, o Poder Público foi condenado a ofertar e custear o tratamento, garantindo o direito à saúde de forma compatível com as convicções religiosas.
Representantes dos pacientes argumentaram que o tratamento sem sangue tem chancela da Organização Mundial de Saúde (OMS). E que o Sistema Único de Saúde já tem os equipamentos necessários para atender os pacientes que têm recusa terapêutica ao uso de sangue.
Votos dos relatores
Os relatores dos processos, o presidente Luís Roberto Barroso e o decano Gilmar Mendes, apresentaram seus votos na quinta-feira passada (19).
Barroso votou para reconhecer que as testemunhas de Jeová têm o direito de recusa à transfusão de sangue em qualquer procedimento médico.
E que o Poder Público tem o dever de fornecer o tratamento alternativo no âmbito do próprio Sistema Único de Saúde para pessoas que fazem parte da religião, desde que o custo não seja desproporcional.
Se o paciente não tiver condições de arcar com os gastos, o ministro considerou que é razoável que os custos sejam pagos pelos governos.
“Existe direito das pessoas que professam a religião Testemunhas de Jeová de recusa à transfusão de sangue em qualquer procedimento médico”, afirmou o presidente.
“Existindo tratamento alternativo no âmbito do próprio SUS, parece fora de dúvida que ele seja oferecido ao paciente nessas circunstâncias. Portanto, há um dever do Estado, desde que isso não represente um ônus desproporcional. Sendo o paciente hipossuficiente, que não têm condições financeiras favoráveis, é razoável e proporcional o custeio do deslocamento e da permanência pelo tempo necessário na localidade da instituição que oferece o procedimento”, completou.
Apenas maiores de idade
O ministro deixou claro que a recusa do tratamento não pode ser feita por uma pessoa para outro paciente. Não pode, por exemplo, ser feita por uma pessoa para um menor — pais para filhos.
A recusa deve ser manifestada por um paciente que seja maior de idade, capaz e com condições de discernimento. A vontade deve ser expressa de forma livre, voluntária, autônoma e sem coação.
É preciso que esteja expressa, seja prévia ao ato médico e atual (é possível mudar de ideia). Antes da decisão, o paciente deve ser esclarecido, com informações médicas completas, sobre os riscos do tratamento.
O relator do segundo processo, ministro Gilmar Mendes, votou na sequência. Acompanhou o entendimento do ministro Barroso no primeiro caso. Acrescentou que o médico não pode impor o procedimento recusado pelo paciente.
“A autodeterminação e liberdade de crença – quando houver manifestação livre, consciente e informada de pessoa capaz civilmente em sentido contrário à submissão ao tratamento – impedem a atuação forçada dos profissionais de saúde envolvidos, ainda que presente risco iminente de morte do paciente”, afirmou o decano.
“Ainda subsiste o dever de zelar pela vida do paciente através de todas as outras técnicas e procedimentos disponíveis e compatíveis com a crença por ela professada”, prosseguiu.
“A atuação médica em respeito à legítima opção realizada pelo paciente não pode ser caracterizada, a priori, como uma conduta criminosa, como omissão de socorro. É preciso que se analise, caso a caso, se todos os meios aceitos pelo paciente foram empregados. De igual sorte, adotados todos os mecanismos aceitos pelo paciente, não há que se falar em responsabilidade civil do Estado ou do agente responsável em razão de danos sofridos pela ausência de transfusão de sangue”, completou.
Barroso também acompanhou as conclusões do ministro Gilmar Mendes. Também seguiram nesta linha os ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques e Luiz Fux.
O ministro Dias Toffoli não vota, pois está fora por questões de saúde.
Propostas de tese
Os casos têm repercussão geral, ou seja, a decisão do plenário será aplicada a processos semelhantes que tramitam em instâncias inferiores. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 1.461 processos com os mesmos temas aguardam uma solução.
Os relatores, então, sugeriram textos de tese para orientar a atuação da Justiça nestes casos.
Barroso propôs a seguinte tese:
“Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar o procedimento médico que envolva transfusão de sangue com base na autonomia individual e na liberdade religiosa.
Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no Sistema Único de Saúde, podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio.
A recusa de transfusão de sangue somente pode ser manifestada em relação ao próprio interessado, sem estender-se a terceiros, inclusive e notadamente filhos menores. Porém, havendo tratamento alternativo eficaz, conforme avaliação médica, os pais poderão optar por ele”.
Gilmar Mendes propôs a seguinte tese:
“É permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, recusar-se a submeter a tratamento de saúde por motivos religiosos. A recusa a tratamento de saúde por razões religiosas é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida pelo paciente, inclusive quando veiculada por meio de diretiva antecipada de vontade.
É possível a realização de procedimento médico, disponibilizado a todos pelo Sistema Público de Saúde, com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnico-científica de sucesso, anuência da equipe médica com a sua realização e decisão inequívoca, livre e informada, esclarecida do paciente”.