Por que tantas mulheres não conseguem identificar um Lobo Mau disfarçado de príncipe encantado? Esse é um comportamento mais comum do que se imagina e tem raízes profundas em como somos educadas e condicionadas a ver o mundo.
A Síndrome da Chapeuzinho Vermelho é um termo que ajuda a ilustrar essa cegueira diante de potenciais abusadores. Assim como na clássica história infantil, somos ensinadas a confiar no “caçador” que vai nos proteger e a ignorar os sinais de perigo quando ele se apresenta. Fomos treinadas para sermos a Chapeuzinho: ingênuas, despreparadas e inconscientes dos riscos à nossa volta.
E esse fenômeno não acontece por acaso. A forma como as meninas são educadas desempenha um papel crucial nesse processo. Desde cedo, somos bombardeadas com a ideia de que precisamos ser agradáveis, educadas e que é nossa responsabilidade transformar as situações difíceis em algo positivo.
Aprendemos a não questionar, a não incomodar e, acima de tudo, a acreditar que o “Lobo Mau” só existe como uma figura caricatural: o vilão explícito, óbvio, que todos reconhecem. A realidade, porém, é muito mais sutil e perigosa. Clarissa Pinkola Estés, em sua obra “Mulheres que Correm com os Lobos”, recupera o mito do Barba Azul para explicar como as mulheres são socialmente treinadas a ignorar os sinais de alerta em relacionamentos abusivos.
Barba Azul, um nobre cruel que seduz mulheres inocentes, é o arquétipo de predador que esconde sua verdadeira natureza até que seja tarde demais. Ele não é o Lobo Mau que devora abertamente – ele usa o charme, a gentileza e a sedução para atrair suas vítimas e, só então, revelar sua face predatória.
Esse mito dialoga diretamente com a Síndrome da Chapeuzinho Vermelho: assim como a menina ingênua que segue as instruções do lobo, somos condicionadas a ignorar o instinto de proteção e a voz interior que diz “isso não está certo”. Ao contrário, somos levadas a ver esses sinais como pequenas falhas de caráter ou comportamentos que podemos “ajustar” com paciência e amor.
Quando Barba Azul proíbe suas esposas de entrar no quarto secreto, ele está testando até que ponto elas são capazes de desobedecer – até que ponto são capazes de enxergar o perigo e se proteger. Esse é o ponto que conecta o mito de Barba Azul e a Síndrome da Chapeuzinho Vermelho: a cegueira diante do predador não é natural, é construída. É o resultado de uma socialização que nos ensina a ser obedientes, dóceis e a dar sempre o benefício da dúvida, mesmo quando todos os sinais apontam para o contrário.
“Vovó, que dentes afiados a senhora tem!”
A Chapeuzinho Vermelho, ao ouvir o lobo disfarçado de vovó, pergunta inocentemente sobre os olhos grandes, as mãos grandes e os dentes afiados. Em vez de ver o perigo, ela o racionaliza. Assim como tantas de nós fazemos em relacionamentos abusivos: quando a violência psicológica começa a aparecer, racionalizamos dizendo que ele está “estressado” ou que “eu também sou culpada.”
Não vemos o Lobo Mau porque fomos ensinadas a fechar os olhos. A Síndrome da Chapeuzinho Vermelho é, portanto, mais do que ingenuidade. É o resultado de uma cultura que nos ensina a priorizar a aceitação e a validação masculina, a acreditar que se formos boas o suficiente, seremos capazes de transformar qualquer predador.
Ignoramos o Lobo Mau não porque não o reconhecemos, mas porque fomos educadas a acreditar que ele não é assim tão mau – e que, de alguma forma, é nossa responsabilidade “domá-lo”. A cura para essa cegueira começa com o resgate do nosso instinto. Como Clarissa Estés sugere, precisamos nos reconectar com nossa capacidade de perceber, questionar e dizer “não”.
O mito de Barba Azul é um alerta: não basta identificar o predador; precisamos também ter a coragem de escapar dele antes que seja tarde demais. O mesmo vale para a Chapeuzinho: ao contrário da história tradicional, ela não deve esperar ser salva por um caçador externo. Ela deve ser capaz de ver o perigo e agir sozinha.
Identificar o Lobo Mau é um processo que começa com o rompimento dessas narrativas que nos prendem à passividade e ao desejo de agradar. É preciso reaprender a ouvir aquela voz interior que nos avisa quando algo está errado, sem silenciá-la com desculpas ou justificativas.
É entender que, ao contrário do que nos contaram, nem todos os lobos podem ser redimidos – e não cabe a nós nos sacrificar tentando. Porque, no final, a verdadeira força de uma mulher não está em domesticar o predador, mas em reconhecer seu próprio poder e se afastar antes que ele tenha a chance de mostrar os dentes.
*Mayra Cardozo é mentora de Mulheres e Advogada, especialista em gênero e sócia do escritório Martins Cardozo Advogados Associados. Idealizadora do método alma livre criado para auxiliar mulheres a saírem de relacionamentos tóxicos e abusivos.