Em reduto obediente aos militares, o mineiro venceu Maluf em uma disputa indireta que marcaria o fim do comando militar.
Os ventos da mudança começaram a soprar às 12h25, quando emissoras de rádio, televisão e as agências de notícia – com seus extintos e barulhentos aparelhos de telex – começaram a disparar os detalhes do acontecimento mais esperado das últimas duas décadas: o ex-governador de Minas, o civil Tancredo Neves, da Aliança Democrática, fora eleito naquele instante o novo presidente do Brasil, vencendo o candidato do PDS, deputado Paulo Maluf, por uma diferença de 300 votos.
Foram apenas 660 votos válidos e 26 abstenções. O suficiente, em um Colégio Eleitoral até então obediente aos generais de plantão, para tornar o 15 de janeiro de 1985 o marco histórico que encerraria o ciclo militar iniciado em 1964, abrindo caminho para a esperada redemocratização. Um Congresso ainda amedrontado comemoraria discretamente, com aplausos e poucos gritos de “viva a democracia!”, a primeira grande vitória depois de 21 anos de ditadura e mordaça. Era um acontecimento político de vulto.
O Brasil de 30 anos depois deve muito à genialidade política do mineiro Tancredo Neves que, mesmo atuando com casuísmo nos bastidores do regime quando a emenda Dante de Oliveira ainda era uma esperança, fez a costura política que permitiu – sem tiros nem rupturas, como dita o jeitinho brasileiro – a troca da ditadura por um regime de liberdade política tão ampla que até a extrema direita hoje tem o direito de berrar nas ruas pela volta dos militares.
Fortalecido pela campanha das Diretas Já e aceito pela caserna para cumprir a transição sem ameaças, Tancredo venceu Maluf facilmente, mas perderia para a doença que três meses depois o matou, sem deixar que assumisse a presidência. Resultado dos compromissos feitos em campanha, seu vice, José Sarney, convocaria a Assembleia Nacional Constituinte e eleições diretas para todos os níveis de poder. Sob a luz de uma nova Constituição, em 1988, o país começaria a se livrar do entulho autoritário.
Um dos maiores legados de Tancredo, com o que concordam os historiadores, foi ter dado início ao pacto que afastou os militares do poder pelo mais longo período da história republicana e promoveu o reencontro do Brasil com a democracia. Trinta anos depois, com seus erros e acertos, a democracia exorcizou de tal forma os fantasmas golpistas que as manifestações atuais pareceriam à época pura ficção. Para se ter uma ideia do contraste, durante todo o governo do último general a ocupar o Palácio do Planalto, João Figueiredo, a linha dura militar tentou evitar a abertura promovendo dezenas de atentados à bomba.
A eleição de Tancredo pôs fim às conspirações e deu musculatura para a transição segura, num momento em que as feridas da luta armada ainda não haviam cicatrizado. Mas a volta da democracia foi, a bem da verdade histórica, concessão dos generais e custou barato para um regime que prendeu milhares de opositores, torturou, expulsou e assassinou outras centenas. Naquelas circunstâncias era, no entanto, a conquista possível na obra de engenharia política arquitetada por Tancredo Neves.
O Brasil era à época um país muito diferente, quase irreconhecível às vistas das atuais gerações. A censura, inicialmente aceita com condescendência pela elite iludida com a intenção dos militares e, depois, imposta na marra, alienou gerações e impediu que o país tomasse conhecimento do que foram os horrores dos anos de chumbo. O relato oficial do período e dos crimes praticados foi resgatado e divulgado só agora, no final do ano passado, pela Comissão Nacional da Verdade.
A primeira tarefa do governo de transição foi derrubar a censura, os famigerados atos institucionais e a Lei de Segurança Nacional, extinguir o sistema de espionagem política instalado no Serviço Nacional de Informação (SNI) – hoje Abin –, acabar com os pacotes econômicos que eram empurrados goela abaixo com o amparo de um Congresso subserviente e substituir o aparato militar incrustrado no governo havia 21 anos. As providências adotadas por Sarney constavam do programa de governo do titular da chapa ao pregar país afora a instituição da Nova República.
LULA
Remanescente da era Vargas e primeiro ministro na frustrada incursão ao parlamentarismo no governo João Goulart, Tancredo foi o líder político certo para a troca de regime. Conservador, raposa, conciliador e versátil, tinha a capacidade de “andar com um pé em cada canoa e acender uma vela a Deus e outra ao Diabo”, conforme observou à época o então radical líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, que orientou a bancada do partido que havia fundado naqueles tempos a não participar da eleição indireta do Colégio Eleitoral.
“Mas eu pelo menos acendo uma a Deus!”, devolveu Tancredo, em entrevista durante a campanha. Rigoroso com os desvios éticos de seus integrantes naquela época, o PT expulsou três parlamentares (Bete Mendes, Airton Soares e José Eudes) que votaram em Tancredo, mas conseguiu proibir que outros 26 comparecessem à sessão histórica. Vivia-se na era das ilusões ideológicas. Lula era a principal força de uma oposição que, 30 anos depois, em uma curiosa inversão, está nas mãos de um neto de Tancredo, o senador Aécio Neves.
O desfalque não alteraria o favoritismo de Tancredo. Fundador do PP, ele havia feito um pacto com o PMDB de Ulisses Guimarães e, de quebra, rachara a base do governo, atraindo dissidentes de peso como o então vice-presidente Aureliano Chaves, José Sarney e Antônio Carlos Magalhães. A fusão de esquerda com o centro e parte da direita para formação da Aliança Democrática já daria uma vitória folgada ao ex-governador mineiro.
Para complicar a vida do candidato dos militares e do PDS, malufistas foram flagrados distribuindo dinheiro a parlamentares para tentar virar o jogo. As imagens do índio xavante Mário Juruna abraçando uma montanha de dinheiro, no interior de uma agência bancária, ganhariam o país e colocaria uma pá de cal na candidatura presidencial de Paulo Maluf, em cujo perfil as suspeitas de corrupção colariam, desde então, como marca indissociável.
A história do país ganharia outro rumo, no entanto, se Paulo Maluf não tivesse mantido sua candidatura. Para sorte de Tancredo, e do Brasil, ele acreditou até o último momento que a força que ainda lhe restava no meio militar pudesse ajudar a reverter a tendência da derrota. Contados os votos, Tancredo já organizava a transição que, por ironia do destino, caiu no colo de Sarney. A imagem do mineiro que embalou multidões meses antes pregando país afora uma Nova República – uma campanha exótica para uma disputa que se daria numa única sala, em Brasília – e de seu calvário, da doença até a morte, em 21 de abril de 1985, seriam a plataforma política que garantiria a volta da democracia e o retorno dos militares aos quartéis.