Fotos e vídeos de 'vinganças contra bandidos' e mortes violentas em ações policiais e militares são populares nas redes sociais
"Recado à bandidagem: não matem PMs, não vale a pena – o risco de ir pro inferno mais cedo é muito grande." A frase, publicada numa página com mais de 10 mil seguidores no Facebook, serve de legenda para imagens sangrentas de supostos "assassinos de PMs" que teriam sido baleados na barriga e no rosto pela polícia. Mais de 400 pessoas curtiram. Quase 100 compartilharam com mensagens como de apoio.
Não se trata de um caso isolado. Perfis que compartilham fotos e vídeos de "vinganças contra bandidos", linchamentos públicos e mortes violentas em ações policiais e de membros do Exército são populares entre os brasileiros no Facebook. Levantamento da reportagem da BBC Brasil encontrou pelo menos 15 exemplos – juntas, as páginas são seguidas por mais de meio milhão de pessoas.
Em comum, elas defendem práticas de tortura, pena de morte e criticam defensores de direitos humanos. "Pena de morte pra marginal é pouco, tem que matar sem pena!", diz uma das páginas."Bandido bom é bandido morto" é a resposta padrão para quem tenta defender tratamento mais humano a criminosos.
A Polícia Militar de São Paulo, uma das principais citadas nas páginas de apologia à violência, comentou as menções à corporação em nota enviada à BBC Brasil.
"A PM repudia qualquer forma de violência, bem como de incitação a ela", diz o texto. As PMs do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, também citadas nos vídeos, não responderam aos pedidos de entrevista até a publicação desta reportagem.
Procurado pela BBC Brasil, o Exército Brasileiro se limitou a dizer que as páginas citadas não são oficiais.
Segundo as Forças Armadas, é proibida a divulgação de conteúdo relacionado à rotina de trabalho militares "que possam comprometer sua segurança e a imagem do Exército".
Os donos das páginas não se pronunciaram.
Já o Facebook disse, em nota, que "usuários não podem publicar ameaças reais a outras pessoas ou organizar atos reais de violência" e que "poderemos comunicar às autoridades locais se notarmos o risco real de lesões físicas ou uma ameaça direta à segurança pública"
Vazamento de imagens
"Homens de preto, o que que ‘vocês faz’ [sic]? / Eu faço coisas que até assusta [sic] o Satanás! / Homens de preto, qual é sua missão? / Entra [sic] na favela e deixar corpo no chão."
Versos como estes, supostamente cantados como gritos de guerra das corporações, são publicados junto a fotos de policiais em favelas do Rio de Janeiro.
Boa parte dos conteúdos mostra ações de dentro das viaturas, delegacias ou durante operações em becos e comunidades na periferia.
Caso do vídeo em que supostos policiais obrigam um jovem suspeito de ser traficante a lixar a perna até apagar uma tatuagem que faria menção ao tráfico. Com uma arma apontada para o pé, ele esfrega a perna até sangrar.
Noutro filme, dois supostos traficantes são obrigados a se beijarem na boca. "Língua com língua", obriga o oficial.
Imagens de abordagens agressivas de oficiais do exército em comunidades ocupadas pelas forças armadas também são comuns. As fotos de pessoas baleadas são as mais populares. Quanto mais sangrentas, mais curtidas.
A reportagem questionou a polícia: o vazamento de vídeos e fotos de operações é permitido?
"É importante ressaltar que a maioria das páginas ou perfis é criada de maneira anônima, por supostos ‘admiradores’", diz a PM de São Paulo. "Evidentemente, sem a anuência da Polícia Militar, não havendo assim nenhum vínculo com a Instituição."
A corporação diz recomendar que os agentes da lei usem as redes sociais "com prudência".
"O Comando da Polícia Militar sempre recomenda aos seus integrantes o uso das redes sociais com prudência", diz a corporação. "Caso, eventualmente, seja identificado algum policial militar responsável por página na internet ou perfil em rede social estimulando a violência, ele está sujeito a punições administrativas rigorosas e também na esfera penal."
‘Violência como entretenimento’
Para o jornalista Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos de Violência da USP, essas páginas multiplicam uma visão histórica de "violência como entretenimento".
"Isso não é novo. Na Idade Média tinha gente sendo esquartejada em praça pública. Era como um programa de domingo num ambiente anterior à justiça moderna, as pessoas levavam as crianças para assistir."
O pesquisador compara a popularidade da violência nas redes sociais com programas policiais populares da televisão.
"Numa sociedade em que prevalecem medo, insegurança e vulnerabilidade, essas imagens criam bodes expiatórios que fazem o cidadão ‘se sentir vingado’. Elas supostamente têm aspecto pedagógico, porque mostrariam o que acontece com quem transgride", diz. "Isso traz audiência."
No caso, audiência não significa qualidade. "Há uma sensação de que exterminar esses ‘vilões’ e fazê-los apodrecer na cadeia vai diminuir o problema. Essa falta de reflexão turva a visão das pessoas. É um pensamento meio óbvio – quanto mais bandidos, mais insegura é a sociedade", afirma Paes Manso.
"Dizer que ‘quanto mais criminosos morrem, mais seguros estamos’ é um raciocínio raso. As instituições não conseguem resolver o problema da segurança há mais de 30 anos. Exterminar suspeitos não deixa o mundo mais seguro, ao contrário."
Sobre o envolvimento direto de policiais e militares nas postagens, Paes Manso é direto: "Nem os policiais confiam na justiça. Eles próprios defendem a segurança privada".
Uma das justificativas seria a fragmentação das forças policiais no Brasil.
"Há duas polícias aqui: a civil, para investigar, e a militar, para patrulhar. A PM prende o suspeito, o leva para a Civil e não sabe mais o que vai acontecer com ele", explica.
"Passar o suspeito para outra corporação e não saber o que acontece depois traz uma vontade de fazer justiça pelas próprias mãos. Isso cria grupos que defendem o extermínio de forma privada, como se isso fosse um atalho para se fazer justiça", avalia o pesquisador.
Humanização policial
Ao mesmo tempo em que publicam imagens de extrema violência e supostos atos de "vingança", as páginas também trabalham para mostrar um "lado humano" dos agentes de segurança.
Os exemplos mais comuns são fotografias de policiais carregando crianças e bebês no colo ou ajudando idosos a, por exemplo, atravessar as ruas.
Junto às fotos, os perfis publicam textos que criticam a imagem que seria criada por ONGs e movimentos de direitos humanos sobre os fardados.
"Enquanto ongueiro defende vagabundo a gente faz nosso trabalho, graças a Deus", diz uma das imagens.
Também são populares fotografias e registros de policiais mortos em confronto.
"Soldado… Teu corpo serviu com alma e coração. Fez-te escudo para o próximo! Portanto, anda em paz pelo Paraíso. O inferno já foi tua missão!", diz a legenda de outra.