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Verão: os efeitos da temperatura de deserto para quem trabalha sob o sol

O verão, época mais esperada do ano por muitos brasileiros, vem trazendo recordes de calor em todo o País

Nina Ramos/iG Rio

Vanda Pires da Costa, de 64 anos, carinhosamente conhecida na ponta do Posto 12, do Leblon, como Rainha da Praia

O verão, época mais esperada do ano por muitos brasileiros, vem trazendo recordes de calor em todo o País. No Rio de Janeiro, a sensação térmica chegou a 50ºC no último dia 3, quando os termômetros marcaram 39ºC na capital fluminense. Para fugir do mal-estar causado pelas altas temperaturas, a população está correndo às lojas para comprar ventiladores e aparelhos de ar-condicionado, que registraram alta de 380% e 429% nas vendas, respectivamente, segundo pesquisa do portal Zoom.

No entanto, nem todo mundo pode recorrer à tecnologia para escapar do calor. Desde os vendedores de sorvete nas orlas das praias até os carteiros e os profissionais do setor de construção, quem trabalha em ambientes abertos tem de se virar como pode para amenizar a temperatura elevada.
Homem-pastel

É o caso do paulista Bruno Couto Candeo, de 27 anos, que começou a trabalhar no ramo de recreação e monitoramento em 2005, vestindo pesadas fantasias de personagens de desenhos animados em festas infantis para ganhar entre R$ 80 e R$ 100 por quatro horas de evento. “Eu fazia desde escolinha e salão de festa a ambientes abertos, como portas de lojas, sítios e chácaras”, conta.
Quatro anos depois, para incrementar a renda mensal, Bruno incorporou o personagem “Big Pastel”, mascote de uma pastelaria da Avenida Paulista que ficou conhecido por quem frequentava a região por suas brincadeiras com o público. “Eu trabalhava durante o horário de almoço, das 10 horas às 14 horas, um horário que tem um sol escaldante”, relata. O profissional reconhece a dificuldade de continuar animado usando uma roupa sem ventilação. “Quando está 35ºC, a sensação térmica dentro da fantasia com certeza é de 15ºC a mais. Em situações extremas de calor, geralmente no começo do ano, é bem difícil. E o personagem tem de ser bem motivador, bem alegre, não pode ficar parado. Já teve trabalho que eu tive de abandonar por algumas horas, porque o calor estava muito forte”, comenta Bruno.

Além de praticar esportes para manter o condicionamento físico e aguentar a jornada de trabalho, as garrafas de água e isotônicos são companheiros inseparáveis de Bruno. “A gente sua muito e a fantasia fica toda molhada. Você usa camiseta por baixo, então são umas dez camisetas por dia para poder fazer a troca. Se usa só uma, no final do dia [a fantasia] fica encharcada de suor, fica fedida”, diz.
O calor do verão já fez Bruno pensar em trocar de profissão: "Com certeza, várias vezes. Só que a gente tem contas para pagar, sonhos para realizar e tem de ter grana". Formado em fotografia, o paulista hoje é dono da Compare Festas, empresa de entretenimento para eventos infantis e corporativos, e conta com uma equipe de colaboradores que também se fantasiam. “Tem de esquecer [a temperatura] e pensar na fantasia. Tem de gostar de trabalhar, gostar de passar calor e se divertir”, aconselha.

Calor até no inverno

Quem também lida com temperaturas altas constantemente é Floriano Diniz, de 63 anos, que diz que o calor nunca foi um problema durante os 12 anos pavimentando as ruas de São Paulo. Além do sol, Diniz tem de enfrentar o calor da própria massa de asfalto, que pode chegar a 180ºC, em todas as estações do ano.

Pela exposição às altas temperaturas, Diniz recebe um adicional salarial por trabalho insalubre, que pode variar de 20% a 40% de um salário mínimo (R$ 724). Além disso, a Prefeitura de São Paulo concede equipamentos de segurança necessários não apenas para proteger o trabalhador do asfalto, mas também do sol, disponibilizando protetor solar e boné. Quando perguntado se utiliza o protetor, Diniz é rápido: “Já chego de manhã e já aplico. Eu que fiscalizo [os outros trabalhadores] e vou falando pra todo mundo passar protetor, usar chapéu, fazer tudo direitinho”, conta ele, que diz nunca ter percebido nenhum problema de saúde em decorrência do Sol e calor.
No Rio de Janeiro, sol é sinônimo de faturamento alto na praia. Por isso, nada de carga horária reduzida e nem pé para cima no verão. A sola é queimando na areia para garantir o bolso cheio. No lugar mais democrático do mundo, a praia é campo de trabalho para inúmeros profissionais autônomos. Gilberto José da Silva, de 51 anos, por exemplo, aproveita o período de férias do emprego como auxiliar de serviços gerais para vender mate com limão e aumentar a renda mensal.

“Eu já faço isso há mais de dez anos. No verão a gente vende o mate por R$ 5 e eu consigo tirar, dependendo do dia, cerca de R$ 150. Eu chego na praia umas 9h e vou embora por volta das 17h. Que cansa, cansa, mas a gente precisa, né? E eu gosto da praia. Quando está muito quente, eu dou uma parada de 10 ou 15 minutos, descanso um pouco e depois volto a vender”, contou Gilberto.
O material de trabalho é composto por dois galões: um com mate (de caixinha) e outro com suco de limão. Por ainda encher os recipientes com gelo, Gilberto carrega nos ombros diariamente 15 quilos debaixo de calor forte. “Esse final de ano foi ‘brabo’. A gente pega direto 40º, 42º… Queima muito os pés”, disse o mateiro, que usa camisa, short, boné, óculos e uma toalha molhada para amortecer o peso nos ombros. “Protetor eu nunca passei, acredita? Nunca precisei”, avisou.

Quase na mesma onda de Gilberto, o iG encontrou Henrique Porto, de 39 anos. Revendedor do tradicional Sucolé do Claudinho, que está há 23 anos nas areias do Rio, o carioca ganha comissão pelas vendas. “Cada caixa que eu vendo recebo R$ 65. É um trabalho extra, para faturar a mais. Em mês bom, de verão e férias, eu consigo tirar até R$ 1,6 mil só de sucolé”, revelou.

A carga horária varia de acordo com a quantidade de material. Se em três horas Henrique zerar as caixas, ele pega o caminho de casa. “Eu chego na hora do sol forte mesmo, 12h, que é quando a praia está mais cheia. É pesado, mas o chefe dá todo o suporte. Antes do trabalho, ganhamos R$ 12 para fazer um lanche reforçado. Ele ainda dá três garrafas de água e eu me protejo com protetor solar, boné, óculos e meia dos pés, para não queimar na areia”, mostrou o vendedor.

“Tem que gostar e precisar muito”

Vanda Pires da Costa, de 64 anos, carinhosamente conhecida na ponta do Posto 12, do Leblon, como Rainha da Praia, é uma das barraqueiras que movimenta a areia com aluguel de cadeira, guarda-sol e venda de bebidas. Há 15 anos na profissão, ela confidenciou ao iG que a maior dificuldade é encontrar pessoais que aguentem o tranco das quase 14 horas de trabalho pesado na areia.
A Prefeitura não facilita em nada nosso trabalho. Agora nós não podemos estacionar na orla e nem nas transversais para carregar e descarregar. Por isso, depois do dia de trabalho, todo mundo ainda precisa carregar todo o material para o caminhão nos braços. Isso depois de 12h, 14h debaixo do sol. Quem aguenta?”, questionou.

Durante a semana, quando o movimento é mais baixo, Vanda tem por volta de sete pessoas trabalhando para ela. Já aos sábados e domingos, o número sobe para 15. “O consumo de água deles é enorme, e eu coloco protetor solar aqui à disposição, mas pouquíssimos passam porque não têm o hábito. Durante o dia, eles tomam chuveiradas para conseguir aguentar o calor”, contou a barraqueira.

O pagamento, segundo a dona do ponto, é feito diariamente. “Eles recebem por quanto produzem e tiram, facilmente, mais de R$ 1,5 mil por mês. Tem que gostar de praia, mas também tem que precisar muito. Se for só gosto não sustenta, não”, avisou. No caso de Vanda, a família tomou gosto e construiu o negócio local. Seus três filhos também orquestram suas próprias barracas em áreas vizinhas. Leandro, dono da Paraíso do Leblon, já avisou que a filha não vai seguir os passos da avó e do pai.
“Se for por gosto, se ela realmente amar praia, o contato com a natureza e o trabalho, tudo bem. Mas por necessidade não quero. Ela vai estudar e conseguir um emprego fixo estável”, disparou. Falando como homem de negócios, Leandro sabe que o suor da camisa vale a pena no fim do mês. “Dá para tirar uma quantia boa. Verão, férias escolares… Feriado em São Paulo então, nossa… A praia fica cheia de paulista quando é feriado lá. Fico de olho nisso tudo”, contou.

Nem tudo é sombra e água fresca

Para o carteiro Ivanildo Carlos Chaves, de 42 anos, que trabalha em São Paulo, o verão é sinônimo de desconforto no trabalho. “Todos nós sofremos com o calor, comentamos diariamente sobre isso. É só olhar para as pessoas que trabalham na rua e ver como a pele é castigada pelo sol”, comenta Chaves.

Há 22 anos na profissão, o carteiro diz já ter sofrido lesões na pele em decorrência da exposição direta ao sol. “Eu já procurei dermatologista para ver isso. Já tive de usar outros produtos por conta própria, porque o [protetor solar] dos Correios não é o suficiente. Não só eu como vários colegas”, observa ele, que diz receber uma bisnaga de protetor solar a cada três meses. “Na unidade tem os potes maiores [de protetor solar], mas quando a gente sai pra rua não tem como usar mais”, diz.
Para fazer a entrega das correspondências pelas ruas de São Paulo, Ivanildo deixa a unidade ao meio dia. “É um horário em que o sol ataca mais diretamente. Por isso que a gente pede tanto para que pelo menos no verão pudesse inverter. A gente sabe que o sol de manhã é um pouco mais fresco”, conta o carteiro.

Além do calor, Ivanildo tem de lidar com a sede e conta com a generosidade dos moradores para beber água. “Até tem [como levar água], mas a garrafinha esquenta. Tomar água quente não adianta em nada. A gente acaba pedindo para as pessoas”, observa.

De acordo com o diretor de comunicação do Sindicato dos Trabalhadores dos Correios de São Paulo (Sintect – SP), Douglas Mello, um projeto pedindo aposentadoria especial aos carteiros foi apresentado à Câmara dos Deputados em Brasília. Caso aprovado, o tempo de trabalho necessário para um carteiro se aposentar cairia de 30 anos para 25 anos. Além disso, um projeto pedindo a inversão do horário de entrega das correspondências também já foi apresentado à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

Segundo a assessoria de imprensa dos Correios, a empresa vem desenvolvendo desde 2012 um projeto-piloto para a implantação do programa de entregas matutinas em algumas localidades do Brasil, como no Maranhão, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e no interior de São Paulo.

Sobre a distribuição de protetores solar, os Correios afirmam fornecer “gratuitamente não apenas protetor solar, mas também óculos de sol, camisas de manga longa, bonés e chapéus a todos os empregados que se expõem diariamente às radiações solares”. Especialmente nesta época do ano, a companhia diz distribuir aos carteiros das regiões mais afetadas pelo calor e pela baixa umidade um “kit preventivo”, com soro fisiológico, garrafa para água e protetor labial. Além disso, a empresa realiza exames médicos periódicos em seus funcionários.