Ex-médico e mulher pagariam R$ 9 mil por consultas com psiquiatra de SP.
Interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça de São Paulo revelam que Roger Abdelmassih, de 70 anos e condenado a 278 anos por estupros, também usava o telefone para fazer terapia de casal durante o período em que ficou escondido com a mulher e os filhos gêmeos no Paraguai.
O G1 apurou que o ex-médico e a ex-procuradora da República Larissa Sacco, de 37, se consultavam por telefone com um psiquiatra da capital paulista. Eles usavam uma linha exclusiva para isso. Os grampos deram pistas que ajudaram na localização e prisão do procurado em 19 de agosto, em Assunção.
Numa das conversas interceptadas com o terapeuta, Abdelmassih, que estava foragido e era procurado, fala em cometer "suicídio", caso seu esconderijo seja descoberto e ele acabe preso. Ele ainda se diz "cansado"; preocupado com os filhos e conta que a esposa anda "impaciente" por carregar "um peso muito grande".
Na mesma gravação, Larissa conta ao especialista que trocará as crianças de escola. Iria colocá-las em um colégio americano bilíngue porque não gosta dos "locais [paraguaios]".
Em seguida, o psiquiatra aconselha o casal, segundo o grampo feito neste ano. Diz que Abdelmassih e Larissa não terão uma vida "normal" e os compara aos personagens literários Robinson Crusoé e Sexta-feira (náufrago e índio, respectivamente, que convivem numa ilha no clássico de Daniel Defoe). Também comenta que a família deles poderia se inspirar na do navegador brasileiro Amir Klink, que viaja pelo mundo com ele.
A equipe de reportagem não localizou os advogados de Abdelmassih e Larissa para comentarem o assunto.
As consultas com o psiquiatra eram pagas pelo casal e aconteciam quinzenalmente. De acordo com o Ministério Público e com a polícia, um pacote das sessões de psicanálise custaria até R$ 9 mil. O pagamento seria feito ao terapeuta por intermédio de parentes, amigos e colaboradores de Abdelmassih no Brasil.
Segundo a investigação, 130 interceptações foram feitas. Além de telefones fixos e celulares, mensagens pelo Whats App, Instagram e Facebook foram rastreadas para saber o que o fugitivo conversava e quem financiava a sua clandestinidade. O objetivo dos promotores e policiais era um só: localizar e prender o homem mais procurado de São Paulo.
A Secretaria da Segurança Pública (SSP) chegou a oferecer R$ 10 mil de recompensa por informações que levassem ao fugitivo. Quinze denúncias sobre possíveis paradeiros de Abdelmassih foram feitas, mas nenhuma se confirmou e, por isso, o valor não foi pago.
A prisão do ex-médico acabou atribuída à investigação da Promotoria e da polícia. E os grampos feitos durante a terapia deram pistas importantes que ajudaram na localização de Abdelmassih. Como, por exemplo, o fato dele e do psiquiatra se tratarem pelos primeiros nomes de cada um (Roger, no caso do procurado). E a informação que o condenado deu ao terapeuta de que usava documento falso com outra identidade (Ricardo Galeano).
Suicídio
Nas conversas interceptadas do casal com o psiquiatra foi possível saber o estado emocional que o ex-médico se encontrava. Além de falar constantemente em suicídio, Abdelmassih relatou dificuldades financeiras e decepção com políticos e família, principalmente com os filhos adultos.
Preocupado com a possibilidade de ser rastreado, o fugitivo fala para o psiquiatra que vai se matar se for preso. “Resolvo num minuto”, diz Abdelmassih, que mantinha um revólver calibre 38 na casa alugada em Assunção.
Quando foi pego neste mês pela polícia paraguaia e pela Polícia Federal, o foragido voltou a falar que queria se matar e ainda pediu para os policiais o executarem. Expulso do país vizinho, Abdelmassih acabou levado ao Brasil. Condenado por estuprar e abusar sexualmente de 37 ex-pacientes, ele cumpre a pena na Penitenciária de Tremembé, interior de São Paulo.
Nos telefonemas ao psiquiatra, Abdelmassih demonstra incomodo após ter visto uma foto do seu casamento publicada numa revista brasileira sugerindo possíveis paradeiros. Diz ter feito um seguro de vida de até R$ 4 milhões para Larissa e que gostaria que ela fosse para a Europa.
“Para ela [Larissa] é ruim. Porque eu ainda faço alguns tipos de mudança [disfarces], mas ela não”, diz. Uma foto da ex-procuradora publicada no aplicativo Whats App com o número do celular monitorado ajudou a investigação a rastrear o casal.
Num dos grampos, Abdelmassih diz, no entanto, que está “aqui no Líbano” para despistar. Para a investigação, isso poderia ser um indício de que ele desconfiava que poderia estar sendo monitorado. “Adeus pampa mia”, diz o ex-médico, sugerindo deixar o país vizinho se algo acontecesse a ele.
Psiquiatra
A apuração que levou à prisão de Abdelmassih foi feita pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público em Bauru, no interior paulista. Os promotores investigaram e monitoraram pessoas ligadas a uma rede de proteção para manter o ex-médico na clandestinidade. Essas pessoas são investigadas e podem responder por crimes, como auxiliar fuga de condenado procurado, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.
Segundo especialistas em direito criminal ouvidos pelo G1, pela lei a mulher e parentes de primeiro grau do fugitivo não podem ser responsabilizados por colaborar com o criminoso. Advogados também são isentos de culpa se souberem do paradeiro de um procurado. Apesar disso, Larissa é investigada por suspeita de ter entrado ilegalmente no Paraguai. A Interpol -polícia internacional- enviou alerta para monitorá-la. Sua localização é desconhecida, mas ela estaria com os filhos e parentes em São Paulo.
No que diz respeito ao psiquiatra que atendeu Abdelmassih, ele também está isento de punição, já que o código de ética médica lhe garante o direito ao sigilo com o paciente. Ele pode, por exemplo, atender condenados procurados sem que isso configure ato criminoso. Por esse motivo, o nome do especialista não será divulgado pela equipe de reportagem. Ele também não foi localizado para falar.
“Entendo que psiquiatra ou psicólogo que atende um foragido, sabedor que está foragido, não pratica crime de favorecimento pessoal nenhum. Esse atendimento nada diz com fuga”, explicou o advogado Roberto Del Manto Jr., conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em São Paulo.
“Pelo Código de Ética Médica, uma pessoa que necessita de cuidados tem que ser atendida, independentemente de sua condição de foragido ou não. Não importa quem pague por isso”, disse o advogado criminalista Sergei Cobra Arbex. “Em contrapartida, se a Justiça entender que a conversa entre médico e paciente tem de ser revelada, ela pode cobrar isso do médico se isso for ajudar numa investigação criminal.”
O psisquiatra forense Guido Palomba também não vê problemas no fato de a Justiça autorizar interceptações telefônicas entre paciente e médico se isso servir para uma investigação localizar um criminoso foragido. "Nesse caso, o paciente é um condenado e o médico é seu psiquiatra. O primeiro é procurado e o segundo está fazendo seu trabalho. Não vejo problemas em grampeá-los se o objetivo foi localizar o criminoso".