Para juristas, há risco de que medidas de plebiscito sejam desvirtuadas.
Um plebiscito para tratar da reforma política — como foi defendido esta semana pelo governo federal — pode fazer com que a população aprove propostas que podem acabar sendo desvirtuadas depois, ao chegarem ao Congresso, alertam juristas e pesquisadores do Direito. O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Ayres Britto afirma que seria como a população dar um “cheque em branco” aos parlamentares. Para um tema amplo e árido como a reforma política, poderia ser pensado um outro instrumento de consulta popular, o referendo, no qual, em vez de aprovar ou não uma proposta que depois iria ao Congresso, a população votaria sobre pontos que já teriam sido discutidos e definidos pela Câmara e pelo Senado, defende também o professor Gustavo Binenbojm.
No entanto, também o modelo do referendo pode trazer um risco: o fato de que, como a população votaria se quer ou não um projeto já aprovado no Congresso, e como as perguntas do referendo não poderiam trazer todos os detalhes desse projeto, a população poderia acabar ratificando algo sem conhecer todos os detalhes do que foi votado no Congresso. Seja referendo ou plebiscito, as perguntas que serão feitas à população também precisam ser alvo de debate, ressalta o professor Ivar A. Hartmann.
Gustavo Binenbojm, professor da faculdade de direito da Uerj:
O plebiscito é um instrumento de consulta popular que pressupõe perguntas sobre assuntos muito específicos, sobre os quais a população teria de ter um entendimento claro, quando a reforma política é um tema muito amplo. Por isso, pela natureza complexa desse tema, o instrumento mais adequado de consulta à população seria o referendo. Primeiro, o Congresso conduz uma discussão sobre os diversos pontos da reforma política, e vota um projeto sobre isso.
Então, a legitimação popular a esse projeto viria depois, por meio do referendo; o projeto ou proposta aprovado preveria que aquele texto só entraria em vigor após essa legitimação da consulta popular.
Se for uma consulta plebiscitária, por outro lado, haveria brechas para serem preenchidas depois pelo Congresso, porque as perguntas necessariamente seriam mais generalistas, não abrangeriam todos os detalhes que cada ponto da reforma política tem. No plebiscito, se for uma pergunta muito específica, corre o risco de a pessoa não entender o que está sendo perguntado; se for muito genérica, seriam deixadas essas brechas para o Congresso decidir depois, e ele poderia desvirtuar o que foi aprovado antes pela população.
Ayres Britto, ex-ministro e ex-presidente do STF:
De acordo com a Constituição, a soberania do povo pode ser exercida pelo voto secreto universal, ou mediante lei, e aí caberiam três formas: o referendo, o plebiscito e um projeto de iniciativa popular. Eu prefiro o referendo, onde o Congresso prepara um projeto de lei ou PEC, discute, delibera, e depois o que for aprovado é submetido à população, dependendo, para entrar em vigor, desse endosso, desse aval do povo. O povo votaria já sabendo do que se trata. O Congresso já fez seu papel antes. O conteúdo está ali, não será uma surpresa que virá depois que tiver sido aprovada pela população, como no plebiscito. E as perguntas precisam ser claras, com base na vida vivida das pessoas, não da vida pensada.
No plebiscito, o povo diz se concorda ou não com pontos da reforma política, responde a perguntas que são alternativas radicais, porque são mutuamente excludentes: quero isso ou não, aprovo aquilo ou não. Mas, quando o que foi aprovado chegar ao Congresso, o projeto que o Congresso vai elaborar e votar pode mudar alguma coisa. É dar cheque em branco a ele. O plebiscito é menos confiável, porque é menos provável que o teor da vontade popular seja totalmente acatado depois pelo Congresso.
Ivar A. Hartmann, professor da FGV Direito Rio:
Seja plebiscito ou referendo, o principal problema é a formulação das perguntas que serão feitas à população. Podemos até dizer que, dependendo das perguntas, o resultado pode ser um ou outro; a definição das perguntas já carrega um ou outro resultado. Se for uma consulta por referendo, seria apresentada à população uma lista de itens tirados do projeto aprovado no Congresso, e algumas coisas poderiam entrar embutidas ali, já que as perguntas não poderiam trazer todos os detalhes do projeto aprovado. As pessoas poderiam acabar votando sobre o todo, e detalhes sobre os quais a população não votou acabariam entrando de contrabando. Por isso, vejo mais desvantagens no referendo do que no plebiscito.
De qualquer forma, sendo referendo ou plebiscito, vejo que a formulação das perguntas é o maior desafio. Além de ser feita uma grande campanha de divulgação das propostas pelo governo e pela imprensa, as próprias perguntas, antes de serem levadas para votação da população por plebiscito ou referendo, devem ser submetidas a discussões e consultas: ser alvo, no mínimo, de audiências públicas e, mais que isso, ser colocada à disposição para consulta na internet. A formulação das perguntas deve ser aberta a comentários e consultas mais de uma vez, nos moldes do que ocorreu com a formulação do marco civil da internet, por exemplo.