Inflação alta, aumento de juros e parada no mercado de trabalho devem contribuir para piorar o endividamento dos brasileiros. São pessoas como o aposentado José Mariozo Nunes, que hoje já faz todas as compras de casa com cartão de crédito, inclusive supermercado e farmácia. Ou os integrantes do Devedores Anônimos (DA), grupo inspirado na experiência dos Alcoólicos Anônimos e que se reúne para trocar experiências em um esforço para se recuperar do débito compulsivo. O primeiro dos 12 passos é admitir a impotência perante as dívidas.
“Sou Carla (nome fictício), uma devedora anônima em busca de recuperação”, disse uma das integrantes em reunião realizada na Tijuca, em uma sexta-feira à noite, seguida pelo coro do grupo: “Oi, Carla”. A saudação é padrão quando os participantes fazem suas intervenções e dividem seus sentimentos.
É naquele ambiente “da irmandade” que Carla admite “seu enorme prazer em gastar”:
— Conseguia dar um jeito nas dívidas porque sempre tive dinheiro para gastar, mas chega uma hora em que isso esgota. Quando perdi o emprego, ficou difícil. Estou com uma dívida enorme, sem condições de pagar.
Quem já está endividado sofre mais quando, por causa da inflação, tem menos renda disponível para gastar. O Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro já percebe que algumas pessoas atendidas em seu programa de endividamento começam a usar o cartão de crédito para as compras de supermercado, segundo a defensora pública Alessandra Bentes, coordenadora do Nudecon.
— A inflação está pegando, as pessoas que estão sem dinheiro para pagar comida — diz Patricia Cardoso, subcoordenadora de superendividamento do Nudecon.
A expectativa de especialistas é que esses novos ingredientes no cenário — inflação, juros mais altos e mercado de trabalho mais fraco — podem interromper uma melhora que vinha ocorrendo nos indicadores de endividamento.
— Devemos ter leve piora do endividamento ao longo do segundo semestre. A gente interrompe um pequeno processo de melhora que estava em curso — diz o professor de Economia da USP e economista da Tendências Consultoria Márcio Nakane.
Classe C puxa dívidas
Nos últimos anos, o endividamento vem aumentando puxado pela ascensão da classe C e pelo aumento da oferta de crédito, principalmente o consignado. Em abril, o endividamento das famílias (que corresponde ao volume da dívida em relação à renda dos últimos 12 meses) chegou ao maior nível da série histórica, iniciada em 2005, de 44,23%, segundo o Banco Central. Já o comprometimento de renda — que corresponde ao gasto com o serviço da dívida em relação ao orçamento mensal — foi de 21,54%, em queda há três meses seguidos. Já a inadimplência ficou estável em maio, frente a abril, em 7,5%.
A projeção de Nakane é que o endividamento das famílias encerre o ano em 45%, enquanto o comprometimento da renda fique em 21,62%.
— Ninguém nos obriga a comprar, mas a propaganda é muito grande. A gente faz dívidas pequenas e não percebe elas se acumulando — diz José Mariozo Nunes, que há oito anos recorre ao crédito consignado e começou a perder o controle quando ficou doente e teve que aumentar as despesas com remédios.
Daniela (nome fictício), funcionária pública e devedora anônima, chegou a gastar por mês o equivalente a três vezes o valor do seu salário. Só evitava as dívidas porque tirava recursos da poupança do filho.
Comércio: orçamento apertado
A economista da Confederação Nacional do Comércio (CNC) Marianne Hanson diz que o aumento do endividamento recente não está sendo acompanhado por aceleração no consumo, o que sugere que as pessoas estão com mais gastos e o orçamento está mais apertado:
— Mas não temos uma avaliação de que o endividamento vai continuar forte porque o crédito deve crescer a ritmo moderado. Só é preciso observar o que vai ocorrer com o mercado de trabalho, que é a variável mais importante.
O professor da Universidade de Brasília José Luis Oreiro, por sua vez, espera redução do endividamento nos próximos meses:
— Em função da inflação e do crescimento baixo, que afetam a renda, as pessoas vão reduzir gastos com bens duráveis e recorrer menos a crédito.
Como o crédito no Brasil é de curto prazo, diz ele, aos poucos as pessoas pagam o que devem e o endividamento vai cair.
Para o diretor da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac) Miguel Ribeiro de Oliveira, os indicadores do BC sobre crédito ainda são positivos, com exceção da inadimplência, que parou de cair.
— Os bancos estão mais cautelosos. Se o crédito estivesse forte, haveria preocupação com o endividamento, mas não é o que está acontecendo.
Ele reconhece, no entanto, o aumento do endividamento no país puxado pelo avanço da bancarização e pelo maior acesso da classe C ao crédito, além da política agressiva de incentivos ao consumo do governo. Mas na sua avaliação o perfil do crédito está melhor.
A avaliação de que empréstimo com desconto em folha é dívida boa, porém, é contestada por Alessandra Bentes. Uma porção importante dos endividados que chegam ao Núcleo de Defesa do Consumidor é de gente com orçamento comprometido por essa razão.