O papo furado correu solto em 2010
Amanda Almeida – Estado de Minas
‘Conversa de boteco’ domina várias reuniões na Câmara de Belo Horizonte
Provocações futebolísticas, briga por ingressos de show de axé e lembranças de ”um tempo que não volta mais”. Parece conversa de boteco, mas os temas foram debatidos por vereadores no tempo destinado a”pronunciamentos sobre assuntos relevantes”, o famoso pinga-fogo, nas reuniões ordinárias da Câmara Municipal de Belo Horizonte. Enquanto o papo correu solto em 2010, a produtividade passou longe de esgotar a pauta: de acordo com levantamento do Estado de Minas, das 110 reuniões ordinárias do ano, apenas 27 tiveram votação de projetos de lei.
Vereadores gastam grande parte do tempo de trabalho com ”conversas de boteco” A leitura das atas de reuniões da Câmara, disponíveis no site www.cmbh.mg.gov.br, revela que não há muitas surpresas no dia a dia das plenárias. Às 15h, os encontros são abertos com a presença registrada em painel eletrônico de 30 a 40 vereadores. Antes da apreciação de propostas, eles podem gastar até duas horas com a ”leitura e aprovação da ata da reunião anterior”, a ”fala de oradores inscritos” e ”pronunciamentos sobre assuntos relevantes”. Em discussões acaloradas, eles chegam a consumir todo o tempo previsto pelo regimento interno.
Se o dia é de casa cheia – quando são votados projetos de interesse direto de uma categoria, que lota a Câmara para pressionar os vereadores -, a ansiedade é grande para o início da votação. Não raro, a população sai decepcionada da Casa. É que, encerrado o debate, é hora de votar ou, quase sempre, de deixar o plenário, como ocorreu na maioria das vezes, já que em 83 encontros não houve votação. De uma hora para a outra a presença registrada cai para menos de 21 vereadores, quórum insuficiente para continuar a reunião.
A surpresa mesmo pode ficar por conta do conteúdo dos pronunciamentos. Até um show de música baiana, o Axé Brasil, já foi motivo de discussão. Em 9 de abril, Paulinho Motorista (PSL) usou a tribuna para protestar contra o ”tratamento diferenciado” dado aos vereadores para a distribuição de convites para o evento. Paulo Lamac (PT), líder de governo na Câmara, não negou justificativas: usou parte de seu tempo para deixar claro que a Prefeitura de Belo Horizonte ”só tinha um camarote” no Axé Brasil. Acrescentou ainda que todos os vereadores foram igualmente agraciados, recebendo dois convites para o camarote e 20 ingressos para a cadeira – sendo 10 para o primeiro dia do evento e 10 para o segundo.
A reunião pode também caminhar para provocações futebolísticas, quando Atlético, Cruzeiro ou América conquista ou perde jogo importante. Em 12 de abril, Moamed Rachid (PDT) quis desabafar no plenário, atribuindo uma derrota do Coelho, contra o Galo, à má atuação da arbitragem, que teria ”agido desonestamente”. O vereador reclamou ainda que os times pequenos sempre são ”roubados”.
Entre cruzeirenses e atleticanos, o debate esquentou ainda mais. Em 3 de maio, um dia depois de o Atlético conquistar o Campeonato Mineiro 2010, Paulinho Motorista não conteve a alegria e usou o microfone da Câmara para propagar sua felicidade. Colocou o hino do Galo para tocar no celular e encostou o aparelho no microfone. Enquanto vários vereadores elogiaram a atitude, Arnaldo Godoy (PT), sem manifestar predileção por um ou outro time, disse que a tribuna não deveria ser usada para a comemoração.
Honra Do lado de fora, os assessores de gabinete criam expectativa mesmo é quando Geraldo Félix (PMDB) se aproxima da tribuna. Ele é conhecido por contar casos engraçados e soltar frases de efeito. Em seu quinto mandato, 2010 foi um ano de muitos pronunciamentos. Indignado com a acusação do ex-vereador Sérgio Balbino (PRTB) de que recebeu propina para aprovar projeto de lei que autorizava a construção do shopping Boulevard, ele resolveu contar a história de sua vida para ”lavar sua honra”, dividindo-a em 21 capítulos, apesar de ter prometido inicialmente contá-la em 15 reuniões.
Em 10 de agosto, o vereador anunciou que leria o capítulo ”Abandonado pelos amigos”. Quando tinha 13 anos, ele e amigos foram nadar na Lagoa da Pampulha. Ao pegar a tampa de uma câmera fotográfica que caíra na água para um casal, ganhou uma gorjeta e pagou refrigerante aos amigos. Porém, os ”ingratos” deixaram Félix na lagoa e pegaram carona num caminhão. ”Passei muito tempo sem falar com nenhum deles e até hoje sinto que o que fizeram comigo, me abandonando dentro de uma lagoa, não é coisa de amigo para amigo”, termina o relato.
Félix dividiu outras lembranças de infância com os colegas e até um trauma. Segundo ele, uma servente do colégio em que estudava negou canjica a ele. Sempre que chegava a vez dele na fila, ela dizia: ”Acabou, acabou. Está muito bagunçado”. Na quarta vez ele apelou e virou a panela de canjica na servente, pensando ”ela não devia ter feito isso”. Os ”causos” podem até arrancar risada, mas teve vereador que fez um alerta. Em 13 de novembro, Sérgio Fernando (PHS) disse que sentia medo de que os projetos não se esgotassem nas ordinárias. Dito e feito: o fim do ano chegou e as extraordinárias foram uma constante.