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MPF apela à Justiça de PE para devolver índia a aldeia em AL

Guarda de criança é mantida com o pai em outra cidade, apesar de irregularidades do processo, diz procurador.

O Ministério Público Federal (MPF) em Arapiraca, Alagoas, apelou, na segunda-feira (12 de setembro) à Justiça de Pernambuco contra sentença que manteve a guarda de uma criança indígena com seu pai, Luis Carlos Silva de Souza, em Tacaratu, Pernambuco. Uma decisão da Justiça no município pernambucano, em 2008, retirou a criança, que à época tinha dois anos, da aldeia da etnia Kalankó, em Água Branca, Alagoas, onde morava com a mãe, Ednalva Maria da Silva.

A liminar que afastou a menina da mãe e de sua comunidade tradicional, numa ação promovida pelo Ministério Público estadual de Pernambuco, baseou-se num relatório do conselho tutelar de Água Branca , como afirma o procurador da República José Godoy Bezerra de Souza. Para o MPF, um desrespeito ao artigo 129 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece diversas medidas a serem adotadas obrigatoriamente antes da retirada da guarda.

A apelação oferecida pelo MPF ao Tribunal de Justiça (TJ) de Pernambuco é para que o processo seja julgado pela Justiça Federal em Arapiraca. O procurador José Godoy também pede que sejam declaradas nulas todas as decisões do juiz de Tacaratu, por conterem, no seu entendimento, violações ao ECA, à Constituição Federal e ao Código de Processo Civil.

Para atuar na justiça estadual de Pernambuco, o procurador obteve autorização da Procuradoria Geral da República (PGR), por entender que, ao se tratar de uma menor indígena, o caso passa a envolver interesse coletivo indígena e individual indisponível, atribuições do Ministério Público Federal.

Entenda o caso – Hoje com cinco anos, a criança continua impedida de conviver com a família e aldeia, bem como distante das tradições culturais garantidas por lei. A menina foi retirada da guarda de sua mãe aos dois anos de idade por determinação judicial baseada em um relatório requisitado pelo MP estadual de Pernambuco como estudo psicossocial, mas que foi elaborado somente por uma conselheira tutelar de Água Branca.

Além de inabilitada para demandas que envolvam interesse indígena, a conselheira feriu o artigo 136, II, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), segundo o qual deveria atender e aconselhar os pais ou responsáveis aplicando, caso fosse necessário, as medidas previstas no artigo 129, I a VII do Estatuto.

As medidas previstas vão do encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; de auxílio, passando por orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; encaminhamento a cursos ou programas de orientação, passam pela obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua frequência e aproveitamento escolar; de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado, advertência e só então a perda da guarda.

A liminar do Juiz de Tacaratu não só ignorou todas essas condições e retirou imediatamente a guarda da menina de sua mãe, como foi baseada unicamente no relatório segundo o qual a criança estaria vivendo em condições precárias, abrigada sob lonas num acampamento indígena e, por isso, a mãe não tinha condições de criá-la. Para o MPF, no entanto, além de a falta de recursos materiais não ser motivo suficiente para a perda da guarda, segundo o artigo 23 do ECA, os argumentos do relatório foram negados em parecer antropológico feito no local onde a criança vivia.

De acordo com o estudo, a criança morava com a mãe e a avó numa casa de alvenaria na aldeia Gangorra. Assim como toda a aldeia, frequentava o acampamento para participar da retomada, costume indígena para reaver seu território tradicional, assim como participar dos rituais de sua cultura, como o Toré.

Segundo parecer do antropólogo Ivan Farias, Ednalva e sua filha pertencem a uma comunidade tradicional de valores e práticas muito mais coletivistas do que individualistas, o que, segundo ele, implica na necessidade de a menina se readaptar também aos costumes coletivos de seu grupo social e não somente à mãe.

Separação – Ednalva só foi citada um ano após a decisão de guarda provisória em favor do pai da criança quando, de acordo com o ECA, todo processo deveria levar no máximo 120 dias. Além disso, como afirma o procurador José Godoy, todo o processo transcorreu à revelia de Ednalva. Depois de citada, sem recursos nem conhecimento para contratar um advogado, ela procurou o MPF, mas já não havia tempo hábil para nomear defensor público nem contestar a decisão que lhe retirou a guarda da filha.

O Ministério Público Federal em Arapiraca, no entanto, instaurou inquérito civil público para acompanhar a disputa pela guarda da menina indígena. Para atuar na Justiça estadual, o procurador José Godoy foi autorizado pelo Procurador Geral da República, por meio da portaria nº 387, de julho de 2011, uma vez que a atribuição do MPF é, em regra, de atuação na Justiça Federal.

Godoy afirma que durante o processo, os prazos estabelecidos no ECA foram sumariamente descumpridos, sempre em desfavor da criança, da mãe e da tribo Kalankó, o que contraria direito fundamental do contraditório e da ampla defesa, protegidos pelo artigo 5º da Constituição, como afirma o procurador da República.

Na decisão que retirou a guarda da criança, o juiz não determinou o direito da mãe à visita e tampouco a atuação da Fundação Nacional do Índio (Funai), como também prevê o ECA, no artigo 28, § 6o III. Com isso, Ednalva e a tribo Kalankó ficaram afastadas da criança durante um ano e meio, desde que a menina foi retirada da aldeia

Reencontro – Mãe e filha só voltariam a se encontrar em fevereiro de 2010, após a primeira audiência de instrução, que determinou a visitação materna, pelo período de 60 dias, sempre aos fins de semana e na casa do pai da criança ou de seu avô paterno. Ainda assim, o Pai e a madrasta da menina dificultavam os encontros. Ora levando a criança para outros locais, ora simplesmente saindo de casa com a menina, em pleno dia de visita da mãe.

No mérito da ação, o MPF em Alagoas pede que a Justiça devolva a guarda da criança indígena Silva de Souza à sua mãe e aldeia, julgando improcedente a ação de retirada de guarda proposta pelo MP de Pernambuco. Requer ainda a manifestação expressa sobre as violações aos dispositivos constitucionais e legais descritos na apelação.
Acompanhe abaixo um resumo das nulidades apontadas pelo MPF na apelação

1. Desde o início, a ação tramitou sem a participação de representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai), como determina o artigo 28, parágrafo 6º, III, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

2. Também não foi levado em conta o domicílio da mãe da criança, principal responsável pela mesma para a definição da jurisdição competente a processar e julgar o caso.

3. Ednalva, a mãe de menina indígena, só foi citada um ano depois da decisão da guarda provisória.

4. Em todos os atos processuais que Ednalva compareceu, esteve desacompanhada de advogado;

5. Os prazos estabelecidos no ECA foram sumariamente descumpridos, sempre em desfavor da criança, de Ednalva e da Tribo Kalankó.

6. O Conselho Tutelar de Água Branca descumpriu suas próprias atribuições conforme o que determina o artigo 136 do ECA: atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando as medidas previstas no artigo 129, I a VII

7. Foi praticado ato processual sem documentação nos autos e sem comunicação às partes. No caso específico, a determinação e juntada aos autos de Relatório Psicológico ao Centro de Referência da Assistência Social (Cras) de Tacaratu, documento que foi amplamente utilizado para fundamentar sentença desfavorável à Ednalva, desta vez, violando o artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal e o artigo 2º do Código de Processo Civil.