Num dos primeiros anos desta década, quando ainda era editor de Cultura da Tribuna de Alagoas, fui a Salvador para cobrir um evento musical. Não me lembro mais do que se tratava – as idas à capital baiana eram frequentes naquela época – mas creio que era lançamento de disco de uma dessas bandas de axé music.
A organização da festa disponibilizou para mim um apartamento num dos hotéis mais luxuosos da Bahia, localizado na praia de Itapuã. Cheguei à recepção e fui providenciar o meu check in. “Sobrenome e nome, por favor”, quis saber o recepcionista. “Santos, Carlos”, respondi. Ele conferiu os dados no computador, pediu para preencher uma ficha, entregou-me as chaves e me desejou boa estada na cidade. “A nossa rede se sente orgulhosa pelo fato de o senhor ter escolhido o nosso hotel”, despediu-se o homem. Admirei a sua educação e segui para o quarto, onde achei uma cesta – posta caprichosamente sobre a cama – com uma garrafa de Moët & Chandon, flores, chocolates suíços e um cartão: “Seja bem vindo”. “P&@#$! A organização do evento caprichou”, pensei. Depois de desfazer a mala, tomei um banho, li algo e desci para o restaurante.
À entrada, um pai-de-santo contratado pelo hotel para jogar búzios para os hóspedes chamou a minha atenção com suas vestes impecavelmente brancas. Ao me aproximar, ele estendeu-me a mão. “Que bom lhe ver, Carlos Santos!”, disse. “Pqp! Vai ser adivinho assim na casa de…”, pensei espantado, não chegando a terminar a frase. Refeito do susto, pensei se tratar de um plano tramado por ele para impressionar os hóspedes. “Ah, deve ter pegado meu nome na recepção para fingir ser bom no que faz etc. e tal”, maquinei na mente. “Como está seu pai?”, quis saber ele. Coincidência ou não, na época meu pai se recuperava de um AVC que quase o levava à morte. “Vai bem, obrigado”, respondi aéreo. “Gosto muito do seu pai”, sentenciou. “Você é o filho que mais se parece com ele”, continuou.
Naquele momento, eu já não sabia se estava sendo alvo de sua consulta, mas o fato é que ele tinha acertado tudo até ali. “Nunca mais fui ao Pará, mas gostava de visitar seus pais…”. Espera! Pará? Eu nunca estive no Pará. “O senhor tem certeza que está falando com a pessoa certa?”, perguntei. “Claro, meu filho. Carlos Santos, não é?”, questionou com convicção. “Sim, sou eu”. “Pois então! Eu lhe vi pequeno, correndo pelos corredores de sua casa, lá no Norte”. Havia algo errado naquilo tudo. “Seu pai continua cantando?”, voltou a perguntar, emendando uma pergunta atrás da outra, até que veio a última frase: “Gosto muito dos carimbós dele…”. Alto lá, pensei, atônico. Ca-rim-bó!? E lembrei imediatamente de um cantor que meu pai gostava, em tempos idos, chamado… Carlos Santos! “Hoje eu quero dançar (carimbó)/ Vou dançar com você (carimbó) / Quero entrar nessa roda…”, cantarolei mentalmente uma música que meu pai gostava.
Corri em direção à recepção, aonde cheguei nervoso. “Moço, quem foi que deixou a cesta de presentes na minha cama?”, perguntei. “Senhor, é uma gentileza do nosso hotel para quem contribui diretamente com a cultura do nosso país”, respondeu. “Como assim? Só por que sou jornalista?”. O homem riu. “Não, senhor. Você sabe quem o senhor é”. Tive vontade de soltar um palavrão. Minto. Soltei um palavrão. E subi para o quarto. Pus o Moët & Chandon pra gelar, abri as cortinas, contemplei a vista e desci como o “filho” do Carlos Santos, cantarolando um carimbó. “Vem girar no salão/ Girando, girando no meu coração…”. Ao final de três dias, ainda “famoso”, fui me despedir do pai-de-santo. “Dê lembrança ao povo de Belém do Pará”, recomendou. E depois de trocar algumas palavras com ele, dei-lhe um abraço e as costas, rumo ao anonimato…