Descendo a ladeira de Olinda, lá vai aquele ancião todo melado de farinha, com suas roupas coloridas, gastas, na mão uma garrafa de cachaça e cantando: “Mande embora essa tristeza, mande, por favor...”
Descendo a ladeira de Olinda, lá vai aquele ancião todo melado de farinha, com suas roupas coloridas, gastas, na mão uma garrafa de cachaça e cantando: “Mande embora essa tristeza, mande, por favor…”
Quando me viu pediu uns trocados pra brincar no carnaval, afinal ainda estamos nas prévias carnavalescas. Perguntei-lhe se sabia quem era o autor dessa música, e ele apesar de meio embriagado disse-me firmemente que era de Capiba. Falou-me que gostava também do Nelson Ferreira, principalmente daquela música que dizia assim: “carnaval só tem três dias, nasceu no céu e foi os anjos que inventou”.
Fiquei fascinado com tanta lucidez e mais ainda quando Seu Manoel (esse era seu nome) completou a frase dizendo que quase ninguém compreendia a mensagem dos dois autores. Perguntei-lhe sobre a tal mensagem e ele na bucha retrucou: “Vamos brincar, dançar e aproveitar esses dias de alegria e deixar a saudade pra depois”.
Maravilhado com tamanha cultura, insisti se ele sabia que o frevo estava completando 100 anos; humildemente respondeu-me como se fosse Doutor no assunto: Claro! Sou pernambucano, nordestino e brasileiro, e como dizia Camões, “mudam-se os tempos, mudam-se os costumes”, mas a cultura fica. Como sou escravo do frevo, apesar da difícil condição que o destino me impôs, fui um homem trabalhador, e vivi muito bem, mas depois desandou tudo e aqui estou vivo, vivo pra brincar o frevo que está no meu sangue.
O frevo é um tipo de marchinha bem acelerada, não possui letra, é só tocada por uma banda que segue os blocos carnavalescos, e o mais bonito é ver a multidão dançando e se divertindo. E continuou: Olha meu amigo, o senhor parece que não sabe dançar o frevo; mas vou lhe ensinar, os passos são bem complicados, pois esta dança mistura gingado, malabarismo, rodopio, passinhos miúdos e muitos outros passos.
E pra completar essa belezura de dança, se usa uma sombrinha ou guarda-chuva aberto enquanto se dança. Mas veja bem: também tem o frevo cantado, e o frevo-canção que é uma forma mais lenta; essa dá pro senhor!Cogitei então: vejam só, esse folião me provocando, achando que não tenho sangue pernambucano nas veias. Pois o velho se enganou, e pra me livrar dele, dei-lhe uns trocados e sai percorrendo as ruas olindenses com seus casarões e seu povo alegre.
Parei em frente a Praça do Alto da Sé onde um mestre dava algumas informações a um grupo de jovens. Ele dizia que o frevo tanto é dançado nas ruas como no salão, e que este ritmo herdado dos negros de Olinda se espalhou pelo mundo inteiro.
O mais dançado, entretanto, é uma mistura de Marcha e Polca, sendo uma das danças mais vivas e brejeiras do folclore brasileiro. É tão contagiante que até defunto já levantou do caixão pra acompanhar a multidão. Achei engraçado quando o mestre descontraiu a turma com essa estória, acrescentando que teve mesmo um velório certa vez em que à multidão passava, e que o defunto ainda quente levantou e caiu no frevo, foi então um corre-corre da mulesta.
O fato é que o homem não tinha morrido, foi apenas um ataque de catalepsia. A multidão por sua vez nem notou, só os parentes e os vizinhos é que correram tanto que só Deus sabe em que rua pararam. Outros dizem também que ele enquanto estava desmaiado no caixão recebeu o espírito de um tal passista campeão chamado Moleque Namorador lá das Alagoas, e que nesse momento o homem pulava que nem um raio, pois o espírito do folião alagoano fazia as pernas do cabra ficar no ar. Terminava dizendo que a palavra frevo vem do verbo ferver, e que o negro da capoeira no seu dialético brejeiro dizia “eu frevo”, ao invés de “eu fervo” ao som desse batuque. No instante em que o sol começava declinar sobre a centenária cidade de Olinda naquela tarde pré-carnavalesca, eu ouvia nas proximidades um barulho de orquestra que vinha em nossa direção, detonando um frevo rasgado e sincopado de arrepiar o coração.