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A guerra dos combatentes alagoanos no Araguaia

A censura rigorosa e o tabu que o exército mantém até hoje sobre o assunto, impediram a imprensa de se estender na notícia bombástica de que Alagoas foi um dos Estados que convocou reservistas, em 1970, fato inédito desde o fim da II Guerra; a tropa foi enviada para combater a guerrilha no Sul do Pará.

José Feitosa

José Correia, um dos ativistas de Pariconha preso pela repressão militar em 1969

A censura rigorosa e o tabu que o exército mantém até hoje sobre o assunto, impediram a imprensa de se estender na notícia bombástica – em 1970 o governo convocou reservistas em Alagoas; de acordo com a Constituição, isto só pode ocorrer em caso de guerra externa. No máximo os jornais de Maceió publicaram o edital de convocação destinado aos reservistas das classes de 1946 a 1950; mais de 300 se inscreveram, mas somente 90 foram selecionados para formar a Companhia Anti- Guerrilha. Em fevereiro de 1972 a tropa foi cumprir missão no Vale do Araguaia, no Sul do Pará, onde o exército havia descoberto os focos guerrilheiros montados pelo PCdoB.

Trinta e três anos depois, alguns desses militares passaram dos 60 anos de idade e ainda discutem a finalidade da missão que cumpriram no Araguaia. No período mais violento da ditadura militar, logo após o Ato-Institucional número 5, o cenário político em Alagoas era de tranqüilidade, mas as informações do S-2 (Serviço Secreto) do então 20º Batalhão de Caçadores (hoje 59º Bimtz) apontavam para outra direção; o dossiê indicava a existência de movimento guerrilheiro no Estado envolvendo sindicalistas e trabalhadores rurais – o foco, de acordo com o dossiê, era o município de Pariconha, que na época era povoado e pertencia a Água Branca. Com isto, o Ministério do Exército autorizou a criação da companhia; o quartel alagoano foi o único na área do IV Exército, com sede em Recife, a convocar reservistas.

A GUERRILHA

O agricultor José Correia, hoje residente em Pariconha, foi um dos ativistas do movimento denunciado pelo exército como subversivo e confirma em parte as suspeitas da repressão, que, apesar das prisões realizadas, não conseguiu identificar o então líder estudantil e ativista comunista em São Paulo, Aldo Arantes (ex-deputado federal pelo PCdoB), que tinha se refugiado no sertão alagoano com a mulher e dois filhos. Aldo chegou a ser preso e trazido para Maceió, mas a repressão nada sabia sobre ele. O pior, para a repressão, foi a fuga cinematográfica da cadeia da extinta Delegacia de Ordem e Política Social (Dopse), na rua Cincinato Pinto, ao lado do prédio da Secretaria de Agricultura. Correia conta:

-“A gente aproveitou o domingo, com o jogo do CSA com o CRB, jogo decisivo. Era dia de visita e nós colocamos sonífero na garrafa de café do guarda que ficava na portaria, com as chaves das celas. O sonífero foi preparado por um médico simpatizante da causa dos trabalhadores. O restante dos policiais assistia ao jogo pelo rádio e quando o porteiro adormeceu nós tiramos todo mundo da cela, inclusive o Aldo Arantes, que a gente chamava de Roberto. Foi tudo cronometrado. Deu tudo certo. Nós escalamos o muro e saímos na rua das árvores (Ladislau Neto), onde o Eduardo Bonfim – hoje secretário Estadual da Cultra – estava esperando no fusca”.

A CONVOCAÇÃO

A prisão dos ativistas de Pariconha mostrou que havia um movimento de contestação atuando nos bastidores de Maceió; o estudante de Engenharia da Ufal, Ronaldo Lessa (hoje governador) foi preso depois de pichar o muro do Teatro Deodoro com a frase: “Liberdade para o pessoal de Pariconha”. Hoje, o governador comenta: “Era muita loucura, a gente estava na luta e não podia recuar”. A ousadia da fuga e as manifestações de rua aguçaram a ira da repressão e fundamentou o pedido para que fosse criada, em 1970, a tropa de semi-profissionais, ou seja, reservistas que tivessem prestado o serviço militar cinco anos antes, entre 1965 e 1970. Mais de 300 reservistas alagoanos, nascidos entre 1946 e 1950, atenderam à convocação, mas só havia 90 vagas – foram selecionados os mais novos e os aptos fisicamente. Os militares semi-profissionais foram convocados para servirem por seis anos; como já tinham passado pela fase de instrução da guerra convencional, toda a didática militar foi baseada na guerra de guerrilha; os componentes da Companhia Anti-Guerrilha eram utilizados em missão arriscada de infiltração e, muitos deles, deixavam a barba e o cabelo crescer; também andavam em trajes civis.

A criação dessa companhia coincidiu com a chegada em Maceió do capitão Zamith (José Ribamar Zamith), comandante da PE (Polícia do Exército) no Rio de Janeiro e responsável pela invasão do Calabouço, o restaurante da União Nacional dos Estudantes (UNE) destruído à bala pela repressão. O capitão Zamith figura no livro “Tortura Nunca Mais”, editado pela Arquidiocese de São Paulo; em 1970 ele desembarcou em Maceió para servir como chefe do S-2; era mais temido no quartel do que o comandante, tenente-coronel José de Barros Paes, por coincidência, alagoano. O capitão Zamith foi um dos entusiastas da criação da Companhia Anti-Guerrilha, mas não foi comandá-la; a missão coube ao capitão Uchoa, que também era carioca, da linha dura e, igual a Zamith, magro e tabagista.

OS DEPOIMENTOS

O movimento de Pariconha se baseava nas ações da AP (Ação Popular), movimento político que se originou dentro da Igreja Católica, e que se tornou clandestino. O S-2 do exército apontava o pároco da Igreja do Bomfim, no Poço, como um dos incentivadores e apontava o radialista Castro Filho, já falecido, um dos seus divulgadores na imprensa. Mas, os exageros nos relatórios dos “arapongas” pecavam por excesso; ainda que Aldo Arantes e Socorro Gomes (ex-deputada federal pelo PCdoB do Pará) tivessem morado clandestinamente em Pariconha, a idéia de que pretendiam sabotar a Usina de Paulo Afonso era mais uma invenção da repressão. Sem ter o que fazer em Alagoas a Companhia Anti-Guerrilha foi enviada para o Araguaia; não chegou a trocar tiros, mas, graças à varredoura na floresta, a tropa de Brasília que a substituiu pôde realizar a prisão do guerrilheiro conhecido como Geraldo (José Genoíno, ex-presidente nacional do PT).

Quando embarcaram para o Araguaia, os militares alagoanos não sabiam que iriam participar de uma operação de guerra real; somente depois da escala em Fortaleza – eles embarcaram num hércules da Força Aérea Brasileira (FAB) – foi que o capitão Uchoa, comandante da Companhia, contou a realidade da missão, ainda assim, superficialmente. “Ele (o capitão Uchoa) disse que a gente poderia enfrentar bala real, por isso, tínhamos de estar alertas. Era dormir, comer, andar e fazer as necessidades fisiológicas com o fuzil. E, se a gente se perdesse na floresta, para sobreviver, teríamos de comer até tapuru”, recorda, ainda enojado, o soldado Nilo (Nilo José dos Santos, que serviu por seis anos e hoje é comerciante em Bebedouro). Ele também se refere ao susto que tomou depois, quando soube que havia na região uma guerra de verdade e que poderia ter sido morto por puro vacilo.

A MISSÃO

A tropa alagoana desembarcou em Marabá-PA e seguiu de caminhão para a região de Xambioá, no extremo Sul paraense. Acampada às margens do Rio Araguaia, Nilo recorda que, à noite, os soldados de folga cortavam tronco de bananeira e deixava na barraca, coberto pela manta, para enganar o ronda. Em seguida, iam para as colônias de pescador e povoados de agricultores beber aguardente – “cerveja era difícil e cara”, diz. O soldado Nilo indaga a ele mesmo: “Já pensou se os guerrilheiros resolvem atacar? Iam surpreender a gente sem arma, alguns completamente bêbados, à vontade. Ia ser uma festa. Tinha cabo e soldado à vontade”.

Apesar do horário de lazer que impunham à revelia do comandante, os militares alagoanos sofreram no Araguaia. Foram dois meses de intensa atividade, com a jornada de trabalho iniciando às 5 horas – toque de alvorada, racho para o café matinal, formatura e patrulha na selva. A adaptação em solo desconhecido não foi fácil. “Você acredite que tinha lugar na floresta que a gente abria uma picada de manhã, penetrava uns 50 quilômetros até o final da tarde e quando a gente voltava o mato tinha crescido. Claro, não crescia assim para ficar do tamanho que era antes, mas já não tinha mais a picada no solo. Tinha outro problema; às vezes o solo estava coberto de folhagem numa altura de metro e meio; a gente pisava e afundava. Os igarapés também eram obstáculos e a gente se assustava com os jacarés.”

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