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Nise da Silveira

Nos idos dos anos quarenta do século vinte. Contra a corrente dominante de psiquiatras entusiasmados com os avanços científicos da psiquiatria, especialmente os tratamentos aplicados nos esquizofrênicos, como a lobotomia, os choques elétricos e os potentes remédios, a médica alagoana, Dra. Nise da Silveira se recusa a apertar o botão do choque elétrico.

Nos idos dos anos quarenta do século vinte. Contra a corrente dominante de psiquiatras entusiasmados com os avanços científicos da psiquiatria, especialmente os tratamentos aplicados nos esquizofrênicos, como a lobotomia, os choques elétricos e os potentes remédios, a médica alagoana, Dra. Nise da Silveira, psiquiatra concursada do hospital do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, se recusa a apertar o botão do choque elétrico.

Aceita a pequena sala abandonada de Terapia Ocupacional que, com ajuda de um estagiário que era um artista plástico sofrendo com as funções burocráticas, transforma em Atelier de Pintura para os internos.

A psiquiatria dizia ser impossível curar um “esquizofrênico”, estabelecer um diálogo com aqueles indivíduos desprovidos não apenas da razão mas de qualquer afeto. Representavam perigo para si e para a sociedade. Era normal que vivessem trancafiados. Os novos tratamentos ajudavam a mantê-los calmos, controlados. Mas a psiquiatria não dizia nada que esclarecesse o que era a esquizofrenia, o que se passava com os esquizofrênicos e como ajudá-los.

Nise continuava buscando as respostas, não mais nos compêndios científicos da psiquiatria, mas na relação com seus doentes e por quê não, nas leituras dos livros de Machado de Assis. Uma vez perguntou de sopetão a Otávio Augusto, um interno do Engenho de Dentro, o que era a esquizofrenia.

– “A esquizofrenia consiste em uma doença em que o coração fica sofrendo mais que os outros órgãos, então ele fica maior e estoura”.

Resposta que Nise considera brilhante e se pergunta, como é que Laing, sem ter lido Otávio Augusto tinha escrito que “mesmo os corações partidos poder ser reconstruídos”. Tinha que desenvolver cada vez mais um diálogo de “Eu para Tu” com essas pessoas que depois de tantos anos aprisionadas nas celas infectas de lugares chamados “manicômios” e nos infernos de seus mundos internos eram capazes de dar uma resposta como a de Otávio Augusto.
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Foi, na pequena sala que se transformou em Atelier de Pintura que começou a revolução de Nise da Silveira. Um frenesi de produção de imagens numa velocidade alucinante em contraste total com a rigidez corporal dos chamados esquizofrênicos. Como decifrar a enxurrada de imagens, as seqüências que percorriam, como ajudá-los a não sucumbir nesse processo que acordava os fantasmas e os traumas que os tinha aprisionado em tão extravagantes e sofridos estados? Perguntas dela e de todos os parceiros que tinham embarcado na sua viagem.

Numa de suas últimas palestras na Casa das Palmeiras, a doutora Nise inicia falando dos seres humanos vivendo em nosso planeta. De como alguns se sentem seguros e felizes enquanto outros sofrem dilacerados em seus mundos internos. Afirma que essas pessoas vivem “outros estados do ser” e que isso não significa necessariamente uma doença.

Diferentes estados do ser fazem parte da natureza do ser humano. Sempre existiram em todas as civilizações. Nas visões dos santos, nos delírios dos artistas, nos rituais religiosos, nas meditações dos monges; nas festas, nas danças, nas baladas. Toda noite, quando dormimos viajamos para a terra do “incubo”, ou para os braços de morfeu, como dizia minha avó. Mas acordamos. Nem sempre captamos as mensagens de outras dimensões, em outras linguagens. Afinal de contas “diferentes estados do ser” não são bem vistos pelo iluminada sociedade da razão, do lucro e dos juros. Não podemos perder aquele tempo precioso entre os séculos que separam diferentes estados. Tempo é dinheiro. Deus ajuda a quem cedo madruga. Ligamos o botão e vamos tropeçando, em suma. Mas, outros, os mais frágeis, os mais sensíveis, os que sofreram um baque emocional muito forte sucumbem. Surtam. Paralizam. Movimentam-se repetindo os mesmos movimentos, como que presos numa espiral, presos no tempo, perdidos no espaço.

Os complexos, os dramas de família, base da psicanálise freudiana, não dão conta para a compreensão dos fantásticos delírios dos esquizofrênicos do Engenho de Dentro expressos nas belas e terríveis pinturas. O conceito do inconsciente coletivo descoberto por Jung abre uma nova dimensão. Uma luz no fim do túnel. Uma nova maneira de ler as imagens.

Leituras, grupos de estudos, pessoas de diferentes áreas debruçando-se sobre as pinturas, organizando as séries, catalogando. E começa a nascer o Museu de Imagens do Inconsciente. Com sua equipe segue as viagens dos pintores modernos que subverteram o espaço linear. Visita poetas, místicos, seres que vivem outros “estados do ser”, como, por exemplo, Antonin Artaud. Se intera das experiências de Arte Terapia que surgem na Europa e nos Estados Unidos. Estuda a chamada “Arte Bruta” que entra na cena das artes plásticas.

Momentos de euforia quando identificavam, nas pinturas não apenas caos, desordem, mas também a busca de ordenação sempre acompanhada de uma melhora no estado de espírito do autor. Muito trabalho de pesquisa para levantar o histórico dos internos que por sua vez ajudava a compreender mais a linguagem das imagens. Começam a surgir imagens que se assemelham as Mandalas que em todas as culturas e religiões representam o círculo que é a busca de equilíbrio. Isso seria a prova de que mesmo os corações partidos podiam ser reconstruídos.

A guerreira escreve ao mestre enviando as imagens que pensa serem mandalas. O mestre confirma que eram de fato mandalas, convida Nise para um encontro em Zurique. Organizam juntos uma exposição em Paris. E passa para ela a chave do estudo da mitologia para conseguir decifrar as imagens.

Aí, para o bem da humanidade acontece o encontro cósmico entre a alagoana Nise da Silveira, que não conseguia encaixar os mistérios da alma humana nos esquemas racionalistas e o suíço Carl Gustav Jung que, no mergulho no mundo interno dos pacientes encontra o coletivo e nas profundezas do indivíduo encontra as profundezas da raça humana.

E os dois concordam que o sofrimento e o risco das pessoas que por diferentes razões e tantas loucuras romperam as barreiras do tempo e do espaço não foi em vão. Eles nos revelam o presente dos deuses, tesouros de imagens que, há séculos nos ajudam nessa perigosa e fantástica viagem.

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