O muro de Berlim explode ao som de Pink Floyd. Era o fim da Guerra Fria. Nas ruas, o povo resiste aos tanques e comemora: canta, dança, chora.
O muro de Berlim explode ao som de Pink Floyd. Era o fim da Guerra Fria. Nas ruas, o povo resiste aos tanques e comemora: canta, dança, chora. Embriaga-se. Caça tiranos. Espanta fantasmas. Mitos, heroicamente erguidos, caem dos sagrados pedestais em milésimos de segundos.
O planeta unido assiste ao mundo ruindo, no vídeo. O espetáculo não ameaça. Tudo parecia programado, controlável. O Golfo Pérsico transforma-se num belo cenário. O vazio do deserto nos conduzia agradavelmente ao brilho dos explosivos numa estética pós-moderna, que torna arcaico o nosso sofrimento.
Na Iugoslávia, rebelam-se os generais. Na cidade sérvia de Knin, na Croácia, explodem as primeiras “bombas misteriosas” que destroem edifícios sem provocar vítimas. Era março de 1991. E o estado de "disputa étnica", que dava direito à intervenção armada, já tinha sido criado.
Sem chamar muita atenção do noticiário internacional, a guerra já vinha, há algum tempo, esquentando nas Balcãs. Mas foi deflagrada pelos militares que não se conformavam com o rumo que estava tomando a História.
Era a gota d’água que faltava para mandar aos ares a República Socialista Federal da Iugoslávia (1946-1991) – a bem articulada utopia do marechal Tito, que pretendeu concretizar o sonho de redenção dos "Eslavos do Sul".
Espalhados pela terra, os tijolos das casas e os cadáveres. Embaixo do chão, morando nas cavernas e comendo nos cacos, famílias formadas por sérvios, muçulmanos e croatas.
A guerra explodira e a Iugoslávia implodira. Crueldade explícita. Os eslavos desembestaram-se. Matam, estupram, degolam. Violam vivos e mortos. Incendeiam cidades. Expulsam populações. Embrenham-se no mato. Chocam nossos olhos com a despudorada exposição da ferocidade da vida, que parecia vencida, pelo menos no vídeo.
Concentrados na perigosa encruzilhada onde se encontram e se separam o Oriente e o Ocidente, um punhado de escravos – variáveis descartadas pela História, lixo varrido para debaixo do tapete, sobras de impérios, batalhas, pilhagens – sujam de sangue a gloriosa saga humana. Deitam por terra grandes idéias éticas, justas e estéticas, que compõem o alto conceito que fazemos de nós mesmos.
Imagens impossíveis de serem digeridas sacodem as bases que pareciam assentadas, desde o tempo em que o imperador romano Constantino (280-331 d. C.) dividiu o império em duas partes. É a sombra do Oriente que ameaça o Ocidente.
Rasgando as frágeis cortinas de Versalhes, revelando o significado restritivo e paranóico do Tratado de Maästrich, derretendo gelo que ficou na alma depois de tantos anos de Guerra Fria; os eslavos imolam-se. Fazem emergir dos confins da terra histórias do arco da velha. Reencarnam velhos patriarcas. Reacendem todos os cismas que não foram resolvidos com as discussões bizantinas, nem com o pragmatismo de Constantino.
Há alguns anos da explosão do furacão, as bruxas continuam soltas. A larva desce quente corroendo mais ainda a fina camada de verniz da Civilização. Páginas e páginas escritas nos jornais e nas revistas tentaram compreender, explicar ou, pelo menos, classificar o fenômeno.
O sonho de emancipação e libertação dos escravos do sul virou um pesadelo. A Iugoslávia acabou, mas não desapareceu do mapa. Como um fantasma, ela paira sobre as brasas, mantendo viva a agonia e a raiva entre eslovenos, sérvios, croatas; bósnios, macedônios, montenegrinos; turcos, italianos, búlgaros; romenos, armênios, albaneses e ciganos.
"É como se o mundo tivesse voltado para a Era Telefunken", comentou irônico Humberto Eco, referindo-se ao período entre as duas grandes guerras, quando o dial do imponente rádio de seu avô instigava sua imaginação com nomes misteriosos de distantes lugares…
Plitvice, Zagreb, Belgrado, Lubiana, Osejek, Vukovar, Dubrovnic, Splip, Sarajevo, Skoplje, Srebrenica …
Exóticos, charmosos e misteriosos nomes, que alimentavam o sonho e a fantasia de um mundo bem grande, apagaram-se do dial do nosso rádio. Congelaram-se no longo inverno da Guerra Fria. E, por ironia do destino, na volta que a terra estava dando, retornaram em chamas…
Quantos sinais diferentes, diferentes crenças, usos, costumes. Tantas flores, cores, sons, rios, florestas. Gente forte: enraizada, valente, intransigente. Quedas d’água, cavernas, duendes. Bruxas, demônios, desfiladeiros. Cisnes, lagos, valsas de Viena. Mas não se tratava mais de um conto de fadas.
Tantos mistérios, santuários, velas. Barrocos detalhes medievais em austeros e despojados espaços do início do século. As mais belas mulheres da terra, filhas e netas de velhas camponesas. Legendárias Universidades, ardor revolucionário, alho, "grappa", calamares, fumaças de fortíssimos cigarros, animados papos, entre eles.
Impossível ignorar, difícil esquecer, inútil julgar. Pretensioso explicar.
Quem sabe se a terra cansada de ser esquartejada, pilhada e disputada quis botar o mundo de cabeça para baixo: derrubar não apenas os impérios, mas também o imperador que existe em cada um de nós? E a guerra, com sua tenebrosa performance, mostrar que nunca esteve ausente de nossa História.
Em forma de tragédia, ela calou, por um átimo, nossa falácia democrática. E então, desassombrados da notícia e impossibilitados de opinar, quem sabe, alguns conseguiram escutar o som do violino solitário que, ao cair da tarde, de cima do telhado de uma casa semi-destruída, tocava para abafar o som das bombas que caíam sobre Sarajevo?