A dica de língua portuguesa de hoje trata de vocabulário e de emprego do hífen com o prefixo "não-".
“Schoedl é acusado de ter matado Diego Mendes Modanez, 20 anos, e ferido Felipe Siqueira Cunha de Souza, 21 anos, na Riviera de São Lourenço, em Bertioga (litoral norte de SP), em janeiro de 2004. Em agosto, por 18 votos a 17, o Órgão Especial do MP-SP confirmou o não vitaliciamento de Schoedl no cargo de promotor do MP-SP.”
O fragmento reproduzido acima foi extraído de notícia publicada na revista jurídica “Última Instância”. Schoedl, quando cometeu o assassinato, cumpria o chamado estado probatório, após o qual seu cargo de promotor se tornaria vitalício. Foi condenado onze dias antes do término do referido estágio, ocasião em que foi exonerado.
Do ponto de vista gramatical, o texto aponta para dois problemas, um dos quais bastante comum.
O emprego do termo “vitaliciamento” soa estranho, dado que os dicionários de língua portuguesa (e inclui-se aqui o “Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras”) não o registram. A garantia constitucional dada a certos titulares de funções públicas, que lhes permite não serem afastados, destituídos ou demitidos de seus cargos, salvo por motivo expresso em lei e reconhecido por sentença do órgão judiciário competente, chama-se “vitaliciedade”.
Dito isso, passemos à questão que ainda produz muitas confusões. Trata-se do emprego do hífen após a palavra “não”. É bom que fique claro que, sendo “não” o advérbio de negação (ao qual cabe negar as ações verbais), não há motivo para usar o hífen.
O sinal gráfico torna-se necessário quando a palavra “não” adquire estatuto de prefixo, isto é, quando tem o mesmo valor de partículas como “in", “a”, “des-”, que, incorporadas a radicais preexistentes, produzem sentido negativo, de contrariedade, de oposição.
Uma regra é clara: antes de substantivos, o “não” será sempre um prefixo, motivo pelo qual será ligado a eles por meio do hífen. “Vitaliciedade” é um substantivo; portanto devemos escrever “não-vitaliciedade” (com hífen).
Em outro texto, este publicado no portal UOL, o redator, ao relatar a tragédia ocorrida durante a última peregrinação sagrada a Meca, berço do islamismo, inseriu a frase: “…há um número ainda não-identificado de pessoas mortas…”.
Ora, nesse caso, o hífen não cabe, pois “identificado” é uma forma verbal (um particípio passado) modificada pelo advérbio de negação. O certo, então, é dizer que "há um número ainda não identificado de pessoas mortas".
É certo que o particípio passado pode funcionar como um adjetivo e admitir, nessa situação, o prefixo “não-”. Ocorre que as expressões temporais ou mesmo o agente da passiva (quando é explicitado) asseguram ao particípio a sua condição de verbo, não de adjetivo.
No caso em questão, a palavra “ainda” (que exprime idéia de tempo) indica tratar-se de particípio com valor de verbo. Se a construção fosse “corpos não identificados pela polícia”, o raciocínio seria semelhante. Agora é o agente da passiva (“pela polícia”) que indica tratar-se o particípio realmente de uma forma verbal.
Com os adjetivos, o “não-” é prefixo. Por isso escrevemos, por exemplo, “alimentos não-perecíveis”, que seria o mesmo que dizer “alimentos imperecíveis”. Observe a equivalência entre “não-” e “im-”, ambos prefixos, ou seja, elementos mórficos que se prendem no início das palavras.
Numa construção como “São países não-alinhados”, o particípio tem valor de adjetivo. Daí o uso do hífen.
Abaixo, a correção do texto inicial:
Schoedl é acusado de ter matado Diego Mendes Modanez, 20 anos, e ferido Felipe Siqueira Cunha de Souza, 21 anos, na Riviera de São Lourenço, em Bertioga (litoral norte de SP), em janeiro de 2004. Em agosto, por 18 votos a 17, o Órgão Especial do MP-SP confirmou a não-vitaliciedade de Schoedl no cargo de promotor do MP-SP.
Thaís Nicoleti de Camargo, autora dos livros "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula" (Editora Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom – Governo de Alagoas), apresenta o programa "Português Linha a Linha" na TV Pajuçara.