Categorias: Crônica

O canto da fogo-pagô

A fome abatia cada vez mais as esperanças e expectativas de Serapião e sua família. No sentido literal da palavra, era a necessidade primária de um ser humano que agora como uma praga assolava aquele lar cristão.

A fome abatia cada vez mais as esperanças e expectativas de Serapião e sua família. No sentido literal da palavra, era a necessidade primária de um ser humano que agora como uma praga assolava aquele lar cristão. Na sala está sua esposa, Dona Liu, de braços cruzados olhando para uma pequena imagem de Pe. Cícero Romão Batista, o santo dos nordestinos. O tal ícone parecia fita-la com um olhar fixo e severo. Parecia radiografar a sua miséria, e dele ela ouvia essas palavras no fundo d’alma: Reajam! Tenham fé! Eu sou uma voz que veio da seca e ela não calou.

A pobre Dona Liu, entretanto, ouvia esse clamor em seu coração e sem tirar os olhos da imagem, descruzou os braços e foi até o velho bufe, pegou uma rapadura que tinha guardada a mais de um mês, tirou dois pedaçinhos, chamou os dois filhos e deu para cada um sua porção. Depois foi até o pote pegou meio caneco d’água – naquela água só ela mexia, e deu uns goles aos meninos. O velho relógio despertador que tinham adquirido na feira da cidade por um punhado de espigas de milho, marcava naquele instante o insuportável meio dia sertanejo.

E o começo da tarde corria abafado numa temperatura de 42º graus centígrados. Ela agora se dirigia até a janela do casebre que dava para o terraço. Viu sua jumenta ofegante no calor pegando uma sombra em baixo de um pé de juá que parecia desafiar o Sol. Foi então que cogitou não possuir mais sua vaquinha; suas galinhas; e nem suas duas ovelhas. Na verdade, tinha vendido tudo na feira para ir suprindo as necessidades de casa.

Restava-lhe apenas aquela jumenta, que ela mantinha a base de escassos pedaços de mandacaru; e fazia isso, porque era seu único meio de transporte para ir à cidade. Olhava para o céu e aguardava esperançosa algum aviso de trovoada, para que pudesse colher a água doce da chuva, água de beber, pois a cisterna estava quase seca. Olhava em direção do riacho, sempre seco. Ali eles cavavam cacimbas em suas areias para retirarem uma escassa água salobra que apertadamente dava para um banho e os bichos beberem. Ficou confusa quando certa vez ouviu em seu radio de pilha um locutor dizer que a terra é um planeta água. Mas, ela não compreendia aquilo muito bem ao ver aquele universo a sua volta tão escasso desse elemento.

Serapião é um forte, é um jagunço aguerrido, um sertanejo que enfrenta o Sol com seu chapéu de palha, tais quais os filhos de Conselheiro a vagar pelo sertão. Nenhuma raça tem a coragem de viver entre as terras áridas e as catingas: só o jagunço. Hoje ele chegou cansado, não conseguiu caçar sequer uma rolinha, nem mesmo um preá. Mesmo assim voltou pra casa na esperança de que vai sobreviver.

E naquela noite eles jantaram um prato de farofa d’água com uma xícara de café bem ralo. Ele andava meio tagarela e falava pra mulher – sabe Liu: dizem que pras bandas da beira do mar, na cidade onde mora o governador, chamam aquilo lá de paraíso das águas – Já pensou! E nós aqui nesta situação – Também lá pros lados de Sergipe temos o rio São Francisco, que daqui até lá dá umas 14 léguas – Falam que é muita água, e água doce, mas, pra nós aqui de Alagoas é água perdida, parece até que a gente sofre de demência.

Dona Liu retrucou – não é demência não meu veio, é egoísmo – E não se iluda: Também lá na Capitá existe muita mazela. Tem uma tal de ponta de rua e favela que é vida de amargura que nem a nossa, ninguém tem um conto pra dá numa broa – e se esse tal rio São Francisco fosse bom pra nós, Padinho Cíço do Juazeiro tinha falado. Interferiu Serapião – mas ele com certeza falou Liu – lá onde ele estiver, ta vendo esse mundão d’água doce muié! – Dizem que o Presidente quer desviar água dele pro Ceará! Vai ver que já é o dedo do Padinho Ciço, que dizia que aqui no Nordeste nós era tudo irmão. – Oia Serapa, eu não duvido não – duvido não – O que nosso Santinho dizia, acontecia.

Serapião deitou exausto na rede. Noite de lua clara, viu uma rolinha no juazeiro que cantava no silêncio da noite. Pegou a soca tempero vagarosamente e, mirando, tentou atirar nela; era sua última chance do seu dia de caçada. Contudo, naquele instante, foi tomado de uma angústia, uma angustia de Abraão no deserto. Com as mãos trêmulas, soltou a espingarda e caiu na rede com o corpo pesado. Na cumplicidade do breu noturno uma lágrima brotou-lhe dos olhos. Adormecendo aos poucos na rede ele dizia: Canta rolinha! Canta minha fogo-pagô! Canta rolinha…

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