Categorias: Crônica

O povo

Veja só o que fizeram já a um bom tempo com a Rua do Comércio: aquele terminal de ônibus e o amontoado de gente nas calçadas intransitáveis.

Veja só o que fizeram já a um bom tempo com a Rua do Comércio: aquele terminal de ônibus e o amontoado de gente nas calçadas intransitáveis.

Outro dia, enquanto cruzava a Praça dos Martírios em meio a uma manifestação de servidores em frente ao Palácio, dirigia-me às ruas centrais. Entrementes, fiquei um pouco ali, assistindo ao ato público e a procurar uma sombra, pois o sol estava causticante. Àquela hora do almoço, alguns servidores carregavam uma caixa de isopor e distribuía copinhos de água para os manifestantes, que a essa altura, deviam estar de barriga vazia. Compreendia-se bem naquele instante o eterno contraste que existe entre o povo e o Palácio.

Por fim, deixei a praça e saí pela rua dando trombada em gente nas calçadas cheias e espremidas, driblando os ambulantes espalhados pelo chão e levando fumaça na cara.

Ao abrirmos o jornal na agenda cultural encontramos anúncios recheados de festas de verão; todas de bilheteria popular, as chamadas festas de largo. As pessoas tornam-se uma grande boiada dentro de um curral, a pular e a beber cerveja ao som de um barulho eletrônico qualquer.

Nestas festas acontecem coisas inusitadas além do consumo de entorpecentes; a imprensa quase nunca publica, mas o mínimo que pode acontecer aos freqüentadores desses eventos é quebrar um tornozelo. A massa então extravasa suas angústias numa alegria triste, e ao final, a festa acaba e anuncia-se outra, e assim por diante. Aqui pelos trópicos ninguém pode viver sem festa. E haja festa!

O trabalhador, por sua vez, não vê a hora de chegar à sexta-feira para desafogar-se da sua gravata, da bota, do jaleco ou macacão, e partir para seu tão sonhado happy hour. Tomar um chope gelado no começo da noite com os amigos é fundamental para se dar um balanço da semana que passou, e programar-se para o sábado que logo mais se inicia.

O desempregado, entretanto, fica meio deprê, mas dar-se um jeitinho, sempre aparece nesses momentos uma alma boa e solidária pra pagar uma gelada – ninguém gosta de beber sozinho. Os donos de bar ficam aguardando o dia do pagamento do Estado e da Prefeitura para faturar melhor. E quando se diz: saiu o pagamento! É final de semana feliz pra todo mundo. Neguinho levanta mais cedo e a Fernandes Lima engarrafa até a garganta da Praça Centenário; e os Bancos enchem. Cuidado com as bolsas senhoras! Cuidado com as carteiras senhores! É bom lembrar que neste dia há sempre rondando por perto um fura-pacote; e a polícia anda mais ocupada.

Quando parei no sinal, o rosto daquela moça por traz do vidro do ônibus era de uma beleza simples e cheia de originalidade. Seu rosto altivo, sério, de lábios carnudos e olhos penetrantes, estava focado pelo sol do final da tarde. Aquele rosto desconhecido ficou como uma fotografia em minha mente; havia nele certa melancolia, juventude, vida, e ao mesmo tempo um pouco de tristeza no olhar.

Enquanto o ônibus afastava-se lentamente, pude sentir que todos nós procuramos à beleza, e ela às vezes se depara com a gente de forma surpreendente dentro do nosso dia a dia. Olhando aquele rosto, nem percebi a avalanche de torcedores saindo dos portões do estádio. Uma gangue logo se formou enfrentando outra. Esperei um instante – a polícia logo apareceu e eles seguiram sendo patrulhados; final de jogo é um estopim a ser incendiado.

E tudo que é de lugar público é sempre assim: gente que vem e gente que vai, gente que entra e gente que sai. Assim o mundo caminha, e assim o povo vive com sua força e enfrentado tudo no peito e na raça. Contrariamente, pensava Elis Regina nossa Diva da MPB, quando em certa canção dizia, que é um povo que não vive, apenas agüenta.

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