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Marco Aurélio Mello eleito “O brasileiro do ano”, na Justiça

Ele presidiu as eleições com equilíbrio, disposto a punir o caixa 2 e as irregularidades de campanha. Seu trabalho de conscientização dos eleitores o tornou O Brasileiro do Ano na Justiça

Joédson Alves

Marco Aurélio: “Eu não tenho medo de repercussão

Três estátuas de Dom Quixote equilibram-se sobre a mesa do presidente do Tribunal Superior Eleitoral. “Ele representa a luta pelo impossível, utópica”, diz o ministro Marco Aurélio Mello sobre o personagem de Miguel de Cervantes.

Nas eleições deste ano, o juiz que se inspira no cavaleiro andante resolveu encarar de frente alguns gigantes. Em sua gestão, o TSE recebeu 307 representações, que iam de denúncias da existência de caixa 2 em campanhas até propaganda irregular na televisão.

Rigoroso, ele ainda não aprovou as contas finais nem de quem venceu a eleição presidencial, nem de quem ficou em segundo lugar. Tanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva como seu adversário Geraldo Alckmin estão tendo de se apressar em refazer suas contabilidades de campanha.

“Não temos mais o faz-de-conta nas eleições”, avisa o presidente do TSE. “Muita coisa em 2002 passou por debaixo do pano”, completa, num pito explícito aos seus antecessores. Essa característica de bater-se pelo que acredita, sem dar atenção a interesses e galhardões, valeu a Marco Aurélio Mello, na opinião da redação de ISTOÉ, o destaque como O Brasileiro do Ano na Justiça.

Foi por iniciativa dele que a publicidade institucional do tribunal dirigiu-se este ano para a politização do eleitor. Chamou-se a atenção para o valor do voto. “Tínhamos de usar uma linguagem simples, para mais de 100 milhões de eleitores”, lembra o ministro.

“Dissemos ao eleitor: não escolha para cuidar do Brasil alguém que você não escolheria para ser seu sócio, para cuidar da sua lavoura.” Ir contra a corrente é algo tão comum na rotina de Marco Aurélio que no Supremo Tribunal Federal ele recebeu de seus pares o apelido de “ministro voto vencido”: quase sempre ele está do lado oposto à maioria dos demais.

“Se eu tiver que ir para o paredão, vou para o paredão”, avisa. “Eu não tenho medo de repercussão. Exerço uma missão sublime: julgar conflitos dos meus semelhantes.” É por isso que ele se posiciona, por exemplo, contra a cláusula de barreira, que estabelece limite mínimo de desempenho para atuação dos partidos. “Isso deixaria à míngua 22 legendas.” Para o ministro, muitos partidos teriam desaparecido do mapa sem igualdade.

“Como é que uma minoria pode se tornar maioria?”, questiona. “Como é que o PT cresceu?” As mudanças, diz ele, são descabidas por acabar com o horário de propaganda partidária dos pequenos. “A minha sensibilidade de julgador é a Justiça do Trabalho”, diz. “Foi ali que aprendi a conhecer o contexto social.”

Não são raros os votos polêmicos na história do jurista. Se o assunto é anencéfalo, crianças sem cérebro, ele assina logo uma liminar pela interrupção da gravidez. “Na há vida sem cérebro”, justifica, mexendo num vespeiro de convicções religiosas. Ele foi um dos primeiros a se posicionar contra o nepotismo no Judiciário. “Um presidente de Tribunal de Justiça rompeu comigo”, conta.

“Voto com consciência e dou o peito para baterem”, desafia. “Às vezes, dá a impressão de que você é esquisito”, confessa. “Mas o voto vencido de hoje será o voto vencedor de amanhã”, convence-se. Frustração: a incapacidade de ler e julgar todos os processos. “Hoje, sou um estivador, não sou um julgador”, lamenta. “É horrível.” Os governos, diz, poderiam reduzir muito o congestionamento. “O Estado não dá exemplo. Mais de 70% dos processos envolvem o Estado.” Ele acha que é necessário eliminar de uma vez por todas as possibilidades de protelação. “Os créditos a receber do Estado passam para os sucessores”, critica o ministro.

Impunidade

“Eu quero que todas as mazelas aflorem”, diz o ministro. “As mazelas estão aflorando e isso é mil vezes melhor.” Ele elogia o ineditismo de uma denúncia do Ministério Público contra 40 políticos.

O ministro quer mais. Acha que está na hora de acabar com a impunidade da imunidade. A começar pelo voto às escondidas. “Sou contra voto secreto”, diz. “É mediante o voto que se prestam contas.” Ele também é contra processo sob segredo de Justiça. Principalmente quando envolve desvio de dinheiro público. E não adianta reclamar de direito à privacidade. “A privacidade do homem público não é a mesma do particular”, responde.

Marco Aurélio foi presidente da República cinco vezes. Ele substituiu FHC por 18 dias. A primeira vez foi entre 15 e 21 de maio de 2002. E permitiu ao ministro sancionar a lei que criou a TV Justiça. “Eu era um simples ‘zelador da casa’, mas o Fernando Henrique falou que a sanção e os vetos eram meus”, lembra. “Ele realmente outorgou o cargo.”

Foi o Palácio do Planalto que rendeu dias de chateação. O primo-primeiro, o então presidente Fernando Collor de Mello, teve de deixar a cadeira após uma série de escândalos. “Tudo que acontecia no País, diziam: ‘Ele é primo do Collor!’ É verdade. Fui estigmatizado por isso.” O ministro só conheceu o braço alagoano da família quando Collor foi eleito deputado federal. Dessa época, guarda a solidariedade ao parente. “Um período de purgatório quase indefinido”, diz.

Marco Aurélio teve seu dia no purgatório. Foi em 1966. Ele morava num casarão na Tijuca e fazia cursinho para disputar engenharia. À meia-noite, enfiou o braço em uma placa de vidro. O sangue quente escorreu pelo corpo. Tinha dilacerado o bíceps e os tendões do braço. Foi socorrido pelo irmão, em meio a uma poça vermelha. Chegou ao hospital desmaiado. Foi nessa época que ele deixou tudo e foi para a fazenda da família, em São Pedro da Aldeia. Vacas, cavalos, campos verdes.

Dois anos depois, voltou ao Rio e entrou no curso de direito. A verdadeira escola, acredita ele, veio da infalível literatura clássica. O ministro não consegue visualizar um bom advogado sem leitura. “O que é o direito? É a vida em sociedade, a necessidade de regras para não vingar a lei do mais forte”, diz o ministro. “O romance enriquece muito.”

Vida no campo

A natureza o conquistou. Na infância, viveu entre as plantas numa Jacarepaguá verde. Hoje, mantém em Brasília a mesma condição inusitada de cidadão urbano e rural. Marco Aurélio cria uma vaca da raça gir no quintal. A família faz os próprios queijos e cultiva horta.

“Gosto de colher alface e tomate”, diz. Um poço de 12 metros de fundura abastece a água fria da piscina, onde dá seus mergulhos matinais. Muitas fruteiras, galinhas, patos. Periquitos se encarregam de picar as frutas de uma rara lichia. “Para a mente, esse espaço é uma oxigenação”, gaba-se. “Hoje de manhã eu fui ao pé de laranja-lima com uma faca, de short”, vangloria-se. Na vida do juiz, presente e passado estão lado a lado. O cavalo disputa o verde do quintal com uma Kawasaki 1500. “De vez em quanto, eu vou com a moto para o parque.” A BMW rivaliza com um Fusca 1969. Assim é o polêmico Marco Aurélio.