O Tribunal de Contas da União (TCU) estipulou nesta quarta-feira um prazo de 30 dias para que a presidente Dilma Rousseff se explique sobre o que o órgão considerou ser uma série de irregularidades nas contas públicas de 2014.
Entre as principais dessas irregularidades estão as chamadas “pedaladas fiscais” – manobras contábeis que envolveriam o uso de recursos de bancos federais para maquiar o orçamento federal.
O TCU é responsável pela fiscalização dos gastos do governo. O órgão precisa dar seu parecer sobre as contas do ano passado e tem se mostrado inclinado a recomendar uma rejeição dessas contas em função das pedaladas e de outras manobras para camuflar despesas governamentais.
Em outras ocasiões, o tribunal já recomendou ao Congresso a aprovação com ressalvas dos gastos públicos, mas um parecer pela rejeição seria inédito na história recente do país e poderia ampliar as repercussões políticas do caso.
Em um outro processo aberto para investigar exclusivamente as pedaladas, o TCU já emitiu, em abril, um parecer defendendo que o governo cometeu “crime de responsabilidade” com as tais manobras fiscais.
O órgão ainda está apurando quem seriam os responsáveis, mas a decisão alimenta as expectativas de uma rejeição das contas públicas.
Na terça-feira, o Ministério Público também encaminhou um parecer aos ministros do TCU apoiando a reprovação.
E no mês passado, a oposição ingressou na Procuradoria Geral da República (PGR) com uma ação pedindo a investigação de Dilma pelas manobras contábeis. Na visão da oposição, essas operações não poderiam ter ocorrido sem o consentimento da presidente.
O governo admite que as operações ocorreram, mas nega que sejam irregulares e diz que elas também foram realizadas durante o governo Fernando Henrique Cardoso.
A questão da irregularidade também divide especialistas. “De fato, se ficar provado que um banco público foi usado para financiar o Tesouro, temos uma infração à Lei de Responsabilidade Fiscal”, opina o especialista em contas públicas Raul Velloso.
O economista Mansueto Almeida, funcionário licenciado do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), concorda. “Parece que de 2012 para cá essas manobras fiscais vêm sendo feitas de forma sistemática e planejada – o que é muito grave e as responsabilidades disso precisam ser apuradas”, diz.
Já Amir Khair, ex-secretário de Finanças na gestão da prefeita Luiza Erundina (ex-PT, atual PSB), acha difícil provar que houve infração. “O que estão chamando de ‘pedalada’ não passa de atrasos de pagamentos, comuns em tempos de crise”, opina.
São manobras contábeis que, segundo a oposição, teriam como objetivo melhorar o resultado das contas públicas – ou seja, ajudar o governo a fazer parecer que haveria um equilíbrio maior entre seus gastos e suas despesas.
No caso, o governo Dilma é acusado de atrasar o repasse de recursos para benefícios sociais e subsídios pagos por meio da Caixa Econômica Federal, do Banco do Brasil e do BNDES para passar a impressão de que as contas públicas estariam melhor do que realmente estavam.
Teriam sido “segurados” cerca de R$ 40 bilhões do seguro-desemprego, programa Minha Casa, Minha Vida, Bolsa Família, Programa de Sustentação do Investimento (PSI) e crédito agrícola, segundo o TCU.
Como os desembolsos não foram efetuados, as contas do governo pareceram temporariamente mais equilibradas.
A questão é que não houve atrasos no pagamento desses bilhões de reais em benefícios e subsídios para seus beneficiários, porque os bancos públicos cobriram esse valor – cobrando juros do governo pelo uso de tais recursos.
Tais manobras, segundo o TCU, configurariam operações de financiamento, ou “empréstimos” desses bancos para o Tesouro, o que é proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000 – embora haja quem refute essa tese.
Essas manobras são proibidas?
No entendimento do TCU, sim. Isso porque a Lei de Responsabilidade Fiscal (ver abaixo), aprovada em 2000, proíbe bancos públicos de fazer empréstimos ao governo para proteger a saúde financeira dessas instituições e ajudar a controlar os gastos e nível de endividamento público.
Em sua decisão de abril, o TCU deixou claro que houve uma operação de financiamento irregular embora ainda precisa decidir se considera isso motivo suficiente para um parecer a favor da rejeição das contas do governo.
“Teremos a configuração de um crime de responsabilidade se ficar caracterizado que um banco público está financiando o Tesouro”, diz Raul Velloso.
Para Almeida, a infração é evidente porque os atrasos nos pagamentos dos benefícios e subsídios não foram algo circunstancial. “Foi algo que ocorreu de forma sistemática e planejada”, diz.
Já Khair, opina que ainda há dúvidas sobre se tais operações configuram empréstimos. “Esses atrasos de pagamento são comuns tanto a nível federal quanto estadual e municipal porque, às vezes, em função de uma crise ou algo do tipo, a arrecadação pode não corresponder às expectativas”, diz.
“Acho difícil caracterizar isso como uma operação de empréstimo. E se o governo federal for condenado, imagine as consequências para governos estaduais e municipais, onde esse tipo de situação também ocorre.”
Em abril, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, admitiu que essas operações envolvendo recursos de bancos públicos ocorreram, mas negou que fossem irregulares.
“Não houve ilegalidade. Não houve ofensa à lei. Houve contrato de prestações de serviço”, disse. Segundo o ministro, operações desse tipo seriam realizadas desde 2001, durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
“Se for entendido que isso fere a responsabilidade fiscal, daqui pra frente isso será arrumado”, prometeu.
Após uma investigação sobre as “pedaladas”, o TCU concluiu em abril que as manobras realizadas com recursos dos bancos públicos federais ferem a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Elas configurariam um “crime de responsabilidade”, infração “político-administrativa” cuja sanção, em última instância, pode ser o impedimento do exercício de função pública, ou impeachment.
O relator do processo foi o ministro José Múcio, mas suas conclusões foram aprovadas por todos os outros ministros do TCU.
O tribunal ainda está investigando quem exatamente seria responsável pela infração. Um total de 17 autoridades foram convocadas para prestar esclarecimentos, entre elas o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, o atual ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, e o presidente da Petrobras, Aldemir Bendine.
As defesas dessas autoridades foram costuradas pelo advogado-geral da União (AGU), Luis Inácio Adams, e a previsão era de que fossem entregues a Múcio até o início desta semana.
O ministro Augusto Nardes, relator do processo que avalia as contas do governo, chegou a opinar que a presidente Dilma poderia ser responsabilizada legalmente pelas “pedaladas” – e há quem tenha visto nessa declaração indicações de que o processo poderia dar embasamento a um impeachment.
Após ouvir todos os convocados, o TCU deve elaborar um relatório e propostas de sanções. Os autos do processo serão enviados ao Ministério Público, que poderá abrir ações contra as autoridades responsáveis.
O tribunal deveria julgar as contas do governo de 2014 depois de Nardes, relator do caso, dar seu parecer.
Como o órgão já condenou as “pedaladas”, o governo temia que pudesse dar ainda nesta quarta um parecer rejeitando essas contas.
Nardes de fato disse ter visto vários “indícios de irregularidades” que justificariam uma reprovação.
Antes de tomar uma decisão, porém, o ministro, apoiado por seus colegas do TCU, resolveu chamar Dilma para se explicar pessoalmente.
Um dos objetivos da convocação seria reduzir as chances de que, no caso de uma reprovação, o Planalto vá à Justiça alegando que não teve a oportunidade de se defender.
Adams, da AGU, por exemplo, vinha sustentando que uma rejeição das contas de 2014 seria inapropriada porque o TCU ainda não teve tempo para avaliar a defesa das 17 autoridades convocadas para prestar esclarecimentos no caso das pedaladas.
Em seu relatório, além das pedaladas, Nardes também ressaltou outras irregularidades.
Uma delas foi que, apesar de a receita do governo ter ficado mais de R$250 bilhões abaixo do esperado de 2011 a 2014, a gestão Dilma aumentou seus gastos em 2014, em vez de cortá-los.
Outro problema teria sido a não contabilização de dívidas de curto prazo, em uma suposta tentativa de mascarar as despesas governamentais.
A análise do TCU não seria definitiva. A Constituição estipula que o Congresso deve dar a palavra final sobre o tema e uma decisão na Casa poderia levar anos.
De qualquer forma, isso aumentaria muito as repercussões políticas do caso. E na oposição, poderiam ganhar força os grupos que querem impulsionar um processo de impeachment.
Uma rejeição também ampliaria a desconfiança de agências de classificação de risco e investidores internacionais sobre as contas públicas brasileiras.
Promulgada em 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal procurou consolidar toda a legislação sobre contas públicas que havia até então e introduziu novas regras para controlar o nível de gasto e de endividamento da União, Estados e Municípios.
Ela estabelece uma série de regras para impedir que os governantes de turno gastem mais do que arrecadam, embora nem sempre deixe claro quais as sanções para quem não cumpre as regras.
“Trata-se de um instrumento importante de estabilização do setor público e da economia como um todo, que ajudou a combater a inflação”, diz Velloso.
“A lei proíbe, por exemplo, que os governos passem despesas para seus sucessores sem ter em caixa provisão para cobri-las, algo que costumava acontecer muito no passado.”