Para tratar do vício em álcool e drogas (cocaína e heroína), Renato Russo, o líder da Legião Urbana, passou 29 dias internado na clínica na clínica Vila Serena, no Rio, entre abril e maio de 1993.
O cantor e compositor, um dos principais nomes do rock brasileiro dos anos 1980 e 1990, registrou todo o período de reabilitação. O material foi reunido e sai agora em livro, “Só por hoje e para sempre – Diário do recomeço” (Companhia das Letras).
Neste sábado (25), um evento no Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP) marca o lançamento da obra (veja o serviço abaixo). Haverá exibição do filme “Faroeste caboclo” e do documentário “Rock Brasília – Era de ouro”, além de debate, show e karaokê. A entrada é franca, mas algumas atividades são sujeitas à lotação do auditório.
Em meio a desenhos, cartas, anotações e bilhetes, “Só por hoje e para sempre” traz reflexões e lembranças de Renato Manfredini Júnior, nome verdadeiro do músico. Ele fala sobre as relações com os parceiros de banda, amigos, família e aborda a homossexualidade. Nascido em 1960, Renato morreu em 1996, aos 36, em decorrência da Aids.
Quem assina a introdução do livro é o único filho de Renato Russo, Giuliano Manfredini. Sobre a internação, Giuliano escreve: “É um período crucial em sua vida, ao longo do qual ele se dedicou a um profundo (e por vezes doloroso) processo de autoconhecimento, reflexão e busca pela vida. A leitura deses escritos permitiár aos leitores se aproximar de um Renato Russo que poucos tiveram a oportunidade de conhecer. Um Renato Russo íntimo: detalhista, sentimental, generoso”.
Leia, abaixo, trechos de “Só por hoje e para sempre”, diário de Renato Russo:
“1. MEU TRABALHO
Por volta de 1984, antes de lançarmos nosso primeiro disco, estávamos em São Paulo para uma apresentação no clube Rose Bom Bom (uma casa new wave da moda na época, com capacidade para um público de trezentas pessoas) e subi bêbado ao palco, o que atrapalhou minha dicção e deixou os outros membros da banda muito chateados (exceto o baixista, que também estava mais para lá do que para cá). O público não notou nada, porque nossa música na época era muito barulhenta e todos acharam que minha performance era parte do show. Não era, eles adoraram de qualquer jeito, mas fiquei muito descontrolado e (como sempre) sozinho depois do show porque ninguém queria falar comigo (acharam que tinha sido um desastre). Eu bebi mais (é claro) e achei, com arrogância, que isso era um comportamento tipicamente rock ‘n’ roll, quando na verdade era antiprofissionalismo mesmo.
Nossa pior apresentação deve ter sido em Angra dos Reis, em 1985, quando, além de beber, usei cocaína. Era um festival com várias bandas, pessimamente organizado. Não houve passagem de som e as guitarras estavam desafinadas e eu desafinei o tempo todo (logo eu, eleito o melhor cantor de rock pela revista Bizz e JB por seis anos seguidos). Se estivesse sóbrio, teria controle sobre a situação, em vez de insistir que o erro não era só meu (o que de fato não era, mas, sendo o líder da banda, a responsabilidade foi minha). Por acaso nosso técnico de som gravou a apresentação e fiquei a noite inteira ouvindo aquilo, muito, mas muito chateado e frustrado. Me senti um perfeito idiota e prometi q. isso nunca mais iria acontecer. Me senti muito mal depois, emocionalmente.
Até que em 1988 (eu acho) veio o pior incidente: tivemos que cancelar um show após a terceira música porque, além de não ter descansado, não me alimentei o suficiente e na noite anterior fiz uso abusivo de álcool (e vários outros químicos), o que minou meu stamina, e entrei em pânico completo ao subir no palco e verificar que estava passando mal e sem voz. Isso se deu em Patos de Minas. Fizemos o show no dia seguinte, mas aí o público já havia destruído parte do ginásio e haveria notas em todos os jornais sobre o “incidente”. O show foi espetacular, mas, de acordo com o médico que me atendeu, minha pressão estivera tão alta que eu poderia ter morrido ali mesmo, de um enfarte ou coisa parecida. Legal, né? Tive muito medo. Muito. E depois disso nunca mais deixei essa situação se repetir por minha causa.
2. MINHA SAÚDE
Quase o.d’d* três vezes (uma vez no Rio, em casa, após uso intenso de cocaína e álcool e novamente sem me alimentar, só na base do iogurte — outra no Rio também, e dessa vez tive que pedir para chamarem um médico em casa — e a pior de todas em Brasília, onde estava com um parente meu e fui parar no hospital já quase morto eu acho, em pânico, com taquicardia etc.).** Parei então de usar cocaína e concentrei-me no álcool, o que deve ter me levado a uma reação alérgica tão forte toda vez que bebia um gole somente que fiquei abstêmio por mais de dezoito meses. Aí eu só fumava haxixe. Legal, né? Tive uma hepatite B séria (muito séria aliás), certamente ligada às falhas na minha alimentação. Nunca gostei muito de comida por alguma razão e não comia mesmo. Cheguei aos 50 kg (o que para minha altura, 1,76 m, me fazia parecer alguém com anorexia nervosa etc.). Fiz terapia após esse susto da hepatite e fiquei dois anos sem beber (usei haxixe, downers e heroína no intervalo anterior a isso e maconha no final desses dois anos, 1990-92). Tudo isso foi extremamente prejudicial à minha saúde, senti culpa, medo e vergonha, e minha família e amigos ñ sabem como continuei vivo. Legal, né?
* Morri overdosed.
** Após três dias de uso contínuo de cocaína e só. Nada de comida.
3. MINHAS FINANÇAS
Nunca tive problemas com dinheiro — os estou tendo agora. Antes chegava ao absurdo de Gastar us$ 40 000 (quarenta mil dólares) em viagens (como a que fiz para ny e S. Francisco em 89). Com a dose de Black Label a seis dólares (bebia no mínimo dez doses por dia, isso por três meses) e a garrafa de Chivas Regal 25 a us$ 80, dá para imaginar o quanto joguei fora (além de gracinhas do tipo dar notas de cem dólares para mendigos e homeless people etc.). Ganhei muito dinheiro antes do Plano Collor e mais ainda depois, tenho casa própria, carro etc., mas deveria ter muito mais. Não tenho um histórico tão trágico qto. O de muitos dependentes (que perderam tudo), mas não tenho, no momento, grandes reservas para o futuro e é agora que as coisas estão ficando apertadas, porque meu dinheiro está se acabando e eu me sinto um perfeito imbecil por causa de tudo isso. Poderia ter contribuído p/ ajudar alguma ass. de caridade, ajudar a mim mesmo com terapia (bem antes do que comecei, só em 1990) etc. etc. etc. Poderia ter viajado p/ a Europa (que ainda ñ conheço), mas certamente morreria de overdose de heroína (minha droga favorita, além do álcool) em Amsterdam ou algum lugar. Me sinto horrível, culpado e, novamente, um perfeito idiota com tudo isso. Legal, né? (Heroína é us$ 250 o grama.)
4. MINHA REPUTAÇÃO (MORAL, FAMA, COMO AS PESSOAS ME CONSIDERAM):
Me acham louco, é claro. Não só por causa de meu não conformismo (sou considerado polêmico por ter assumido meu homoerotismo publicamente em entrevistas e em shows), mas até por referências à minha dependência química (e dependência química em geral) em algumas de nossas canções. Também porque o público em geral parece exigir um comportamento dionisíaco de um artista e a reação nas apresentações ao vivo (principalmente quando danço ou finjo desmaios ou — pasmem — simulo masturbação no palco) é sempre a mesma: “Esse cara deve ser muito louco, meu”. Além do fato de que a maior parte das pessoas acha que só alguém que não é “normal” escreve canções “profundas”, ou com conteúdo poético acima do normal, que tocam a sensibilidade de todos de um jeito especial. Naturalmente, os escândalos, meu comportamento agressivo quando bebo e até aspectos privados de minha dependência chegam ao público (e existem também os boatos — nunca se acerta, mas, como é de praxe nestes casos, chega-se perto da verdade: já estive internado em vários hospícios, meu uso de drogas é homérico — embora não faça apologia das drogas em minhas canções, pelo contrário — e até já “morri” umas duas ou três vezes. Já tive que telefonar e avisar meus familiares que continuava vivo, sim, qdo. uma rádio em sp deu boletins sobre minha suposta “morte” ou Desaparecimento). Isso tudo é ótimo em nível de trabalho (publicidade gratuita) mas péssimo qto. à família, amigos e pessoas sensatas. O comentário típico é: “Mas logo ele, tão talentoso e inteligente, se destruindo desse jeito…”. Todos parecem saber que tenho problemas, mas a atitude em relação ao artista parece ser: ele/ela é assim mesmo, é o preço da fama (vide Cazuza, Raul Seixas, Rita Lee, John Lennon, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Kurt Cobain — sem comparações, é claro). No momento minha reputação é péssima, e isso devido a incidentes que realmente aconteceram: problemas com seguranças em shows, violência física e verbal de minha parte, instabilidade emocional, escândalos públicos, e tudo por conta de drogas e álcool. Me sinto envergonhado e confuso por tudo isso e muitas vezes me questionei, por me sentir culpado de não estar sendo um bom exemplo para a juventude. O que eles parecem querer, no entanto, é um “mau” exemplo — um bêbado drogado que por acaso consegue ter a sensibilidade para fazer música que vai direto ao coração de cada um. De dois meses para cá, qdo. cheguei ao “fundo do poço”, a imprensa começou a acompanhar meu caso com o interesse mórbido e sensacionalista próprio dos meios de comunicação de massa, e me dói muito ver meu rosto, nome e vida estampados nos jornais, junto com toda a vergonha e insanidade de meus atos. E tudo tem um fundo de verdade, já que realmente cheguei a perder o controle de minha vida — me sinto péssimo com isso.”