Além dos quatro clientes que Giowana Cambrone, de 35 anos, defendeu nas ações de requalificação civil, outro processo levou a advogada ao tribunal para a troca de nome e gênero nos documentos de identificação: o dela própria.
Sem uma lei que defina os procedimentos da alteração dos documentos para pessoas transexuais, essa parcela da população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros) é obrigada a procurar na Justiça o reconhecimento de sua identidade em processos que podem ser longos e que dependem do entendimento dos juízes.
Hoje com o nome correto e o gênero feminino respeitado em todos os documentos, Giowana conta que enfrentou vários obstáculos até conquistar esse direito.
“Não aceitam que você se autodeclare mulher. Você não pode dar o seu nome. Exigem um profissional de saúde que diga quem você é”, destaca. “Sua declaração é o que menos conta. A pessoa trans precisa que alguém ateste, confirme e comprove que ela pode ser reconhecida por aquele nome.”
Para a advogada, a exclusão sofrida pela população transexual tem muito a ver com a dificuldade para a mudança de nome e gênero nos documentos. Segundo ela, o constrangimento de ter de expor sua condição e reivindicar o tratamento pelo nome escolhido a cada consulta ou entrevista para vaga de emprego afasta as pessoas trans de processos seletivos e de locais de atendimento médico.
“Já teve dia em que cheguei ao local do processo seletivo e desisti. Preferi ir embora do que passar mais uma vez [por constrangimentos]. Tem dia que a gente está mais frágil, e a pessoatrans tem que enfrentar uma batalha todo dia.”
Bianca Figueira Santos, de 43 anos, deu entrada no processo de alteração de nome e gênero em 2010 e, em 2012, obteve a decisão do juiz que alterou sua certidão de nascimento. A partir daí, ela procurou os diversos órgãos públicos para corrigir sua identificação em documentos, incluindo a Marinha, da qual é oficial. A maior parte deles foi rápida, mas a identidade demorou oito meses para ficar pronta.
“Já fui muito constrangida antes de trocar os documentos. Invariavelmente enfrentava com situações, como em laboratórios médicos, em que mesmo falando para a pessoa qual era o meu nome, ela não respeitava.”
Hoje, a oficial da Marinha cursa direito e tem seu nome respeitado em sala de aula. Para ela, a mudança de documentos foi o principal passo para conquistar a liberdade.
“O ato de alterar os seus documentos é mais importante que a cirurgia de trangenitalização. Ele dá para você uma liberdade muito grande de afirmar quem você é e quem você deixa de ser”, diz ela, que defende a aprovação de uma lei para que não seja mais necessário recorrer à Justiça. “Seria mais adequado e razoável. O Judiciário necessita de ser desafogado. Se tirássemos essa responsabilidade das mãos dos juízes teríamos uma Justiça melhor.”
Atualmente, tramita na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei João Nery (5002/2013), dos deputados Jean Willys (PSOL-RJ) e Erika Kokay (PT-DF), que determina que o reconhecimento da identidade de gênero é um direito do cidadão. O projeto recebeu o nome do primeiro transhomem operado no Brasil.
Enquanto uma lei não garante esse direito, a Agência Brasil procurou advogados especialistas no tema para dar orientações sobre os documentos necessários para tentar agilizar o processo de alteração de documentos na Justiça. Veja, abaixo, os principais pontos citados por esses profissionais:
1) É necessário advogado ou defensor público
A presidenta da Comissão de Direito Homoafetivo da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), Raquel de Castro, lembra que, por se tratar de um processo judicial, é preciso buscar um advogado. “O tempo dos processos varia, mas não são processos muito rápidos, como tudo na Justiça”. Caso não tenha dinheiro para pagar pelo auxílio profissional, a pessoa pode recorrer à defensoria pública.
2) Laudos médicos
A advogada Giowana Cambrone critica a necessidade de laudos psiquiátricos ou psicológicos nas ações judiciais de requalificação civil, uma vez que isso reduz a importância da autodeclaração. Mas como essa, em geral, é uma exigência do juiz, a advogada recomenda se prevenir. “Aquelas pessoas que têm um acompanhamento psicológico e psiquiátrico ou que já fazem parte do tratamento de redesignação do Sistema Único de Saúde [terapia hormonal e acompanhamento psicológico para cirurgia] podem colocar essas informações no processo”, explica Giowana. Ainda segundo ela, o magistrado pode pedir um outro laudo de profissionais da própria Justiça.
3) Não precisa de cirurgia
A advogada Patrícia Sanches, especialista em processos de requalificação civil, considera prioritário que as pessoas saibam que não é preciso fazer qualquer tipo de cirurgia para pedir a correção dos documentos. “Diferentemente do que as pessoas normalmente pensam, não há uma determinação de que a pessoa já tenha realizado algum tipo de cirurgia. O posicionamento do Tribunal do Rio e as decisões do Supremo têm demonstrado que essa análise deve ser feita pela identidade de gênero.”
Patrícia vai conduzir uma oficina no 1º Congresso Internacional de Direito Homoafetivo da OAB-RJ, no mês que vem, em que vai discutir pontos relevantes para defender casos como esse. “O interessante é começar pela certidão de nascimento. Quando você altera a certidão, você altera todos os outros documentos depois, juntando a nova certidão com a sentença do juiz”, explica. “A sentença é uma decisão judicial. Tem que ser obedecida. Caso a pessoa encontre algum tipo de dificuldade, pode-se pedir que o próprio juízo oficie o órgão.”
Caso seja casado ou divorciado, o interessado na mudança de documentos também pode pedir a alteração da certidão de casamento já no início do processo, ou corre o risco de ter que entrar com uma segunda ação.
Foi o que aconteceu com a oficial da Marinha Bianca Figueira que, durante a tramitação do processo de requalificação civil, obteve a averbação de divórcio no nome que, na época, tentava trocar. Apesar de ter tentado estender os efeitos da sentença que garantiu o uso do nome Bianca, a Justiça decidiu em duas instâncias que o processo já estava finalizado e que seria necessário dar início a outro.
“Imagina se eu tiver que passar pelos mesmos constrangimentos da primeira ação. Ela não foi nada fácil”, conta. “É um processo demorado, horrível, constrangedor e que te humilha. Parece que você está pedindo um favor.”
3) Provas do uso do nome social
Na hora de convencer o juiz de que o nome social representa a identidade de seu cliente, os advogados podem usar vários tipos de registros como evidências. “Quando pedir recibo, peça tudo no nome social. Táxi, padaria, farmácia. O máximo possível. Faça a carteirinha do SUS no nome social. Além disso, já existem bancos que permitem o cartão no nome social”, diz a advogada Adriana do Valle.
Fotos também podem ser usadas, complementa Patrícia Sanches, e quanto mais antigas elas forem, melhor. “Se o cliente está dizendo que a identidade vem desde cedo, vamos tentar demonstrar desde cedo. Fotografias da infância e da juventude servem. Normalmente, a identidade de gênero aflora muito na adolescência.”
O uso do nome social em redes sociais também pode valer como prova. “Faça logo um Instagram, um Facebook, o máximo de redes sociais possível no nome social para que possa usar como prova. Tudo isso mostra que você é reconhecido e se relaciona com o nome social”.E-mails antigos e documentos do local de trabalho também contam nessa hora”, diz Adriana do Valle.
4) Documentos escolares
Desde o dia 12 de janeiro deste ano, uma resolução sem força de lei do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais recomenda que instituições de ensino usem o nome social em documentos como lista de frequência, boletins e matrículas. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) também já permite o uso do nome social. Algumas instituições de ensino superior também garantem o direito ao uso do nome social.