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Mafiocracia, jogo e cachaça

Em 2008, a Standard & Poor’s foi a primeira agência de classificação de risco a colocar o Brasil no grau de investimento (país bom pagador e confiável). Lula comemorativamente disse (na ocasião): “o Brasil é como um chefe de família responsável, que não desperdiça dinheiro com jogo e cachaça”. 

A mesma agência de classificação foi a primeira a rebaixar a nota do Brasil (9/9/15), porque agora se sabe (com a situação do País em crise e a Operação Lava Jato) que ele, mesmo em época de bonança, não deixou de fazer o que ele sempre fez: gastança exorbitante (o crescimento dos gastos públicos anda na média de 5% a.a. desde a década de 90 – veja Paulo Rabello de Castro), favoritismos decorrentes da presidência de coalizão, exagerado apoio ao consumo (inclusão pelo consumo, não pela educação), endividamento (público e privado), inflação (cada vez mais alta), contas públicas maquiadas, manipulação de preços – da energia elétrica e da gasolina, por exemplo – e uma orgia medonha de corrupção, como a revelada nos escândalos  da Petrobras, Eletrobras, Angra 3, Metrô de São Paulo, mensalões etc.

Como se vê, não foram o jogo e a cachaça que afundaram o Brasil numa nova crise, sim, sobretudo, a grossa corrupção promovida pelos donos do poder, que constitui o combustível por excelência da nossa mafiocracia. Para o ministro decano do STF, Celso Mello, o governo [quiça o mundo político] se tornou um “conluio de delinquentes”. Não chegaríamos jamais a esse tão degradante patamar se as bandas podres do poder não dominassem bem a arte de furtar, “que é ciência verdadeira porque tem princípios certos e demonstrações verdadeiras para conseguir seus efeitos, ainda que [muitas vezes], por rudeza dos discípulos ou por outros impedimentos extrínsecos, não chegue ao que pretende. Mas se o ladrão tem dom natural e é perito na arte, arma seus silogismos como rede varredoura, a que nada escapa” (Arte de furtar, p. 45) [de um modo geral, desse profundo conhecimento bem dispõem as bandas podres dos donos do poder econômico, financeiro e político que dominam nosso território].

A arte de furtar (particularmente a coisa pública), no Brasil, se converteu em “uma verdadeira ciência, ainda que não tenha escola pública nem doutores graduados que a ensinem em universidades” (Arte de furtar, p. 44). Mas como aqui nasceu essa ciência? As grandes obras não acontecem da noite para o dia. A premissa central é a seguinte: os donos do poder (econômico, financeiro e político) sempre dominaram e governaram o Brasil defendendo (apenas) os interesses dos seus feudos (feudos do boi e do agronegócio, do bife, das betoneiras, dos bancos, da bíblia, da bola, da bala, das mineradoras etc.).

Nunca vivemos a execução exitosa de um sistemático e, pelo menos decenal, projeto de País, de nação (começando, evidentemente, pela educação de qualidade para todos). Sempre nos empurram (goela a baixo) desconexos e vazios programas de governo. Então, do que sempre carecemos? De uma nobreza de propósitos que não fosse vil, ao mesmo tempo. No livro Arte de furtar se lê (p. 47) que “um prudente achou mais fácil acender uma fogueira dentro do mar que despertar, em um peito vil, fervores de nobreza”.

A arte de furtar possui precisamente essa valentia, visto que é capaz de transformar gente vil em fidalga, ou seja, ladrões da coisa pública em chefes de poder, em pessoas “respeitáveis”, “honoráveis”. Onde luz o ouro, muitos acham (ilusoriamente) que não há vileza. Nada há de inusitado, no entanto, encontrar “duas contrariedades em um único sujeito, quando respeitam diferentes motivos: [em mafiocracias como a brasileira], é frequente ver “a maior nobreza com a maior baixeza em um único sujeito” (p. 47). Nem sequer quando se promove a nobreza de integrar ao mundo do consumo milhares de pessoas pode-se descartar a concomitância de baixezas iníquas e escatológicas.

Um padre, quando pregava, se encontrou com um menino e perguntou como se chamava. Ele respondeu: “Chamo-me, em casa, Abraãozinho, e na rua Joanico”. Assim são os ladrões, nomeadamente os que compõem La Cosa Nostra: “Na Justiça, quando raramente são sentenciados, são chamados de infames [“ladrões da República”, “bandoleiros de estrada”, “delinquentes”]; mas nas ruas, por onde andam de contínuo em alcateias [bandos], têm nomes muito nobres, porque são Chefes, Cabos, Xerifes, Comandantes etc.: nas obras, no entanto, são todos piratas” (Arte de furtar, p. 47).

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