Proibição de partos na ilha completa 10 anos em meio a reclamações de violações de direitos dos moradores; documentário reúne depoimentos de mães.
“É um pesadelo, você acha que nunca vai acabar. É uma sensação horrível você estar dentro de um quarto presa, às vezes sem dinheiro, longe da minha casa e da minha família.”
A frase acima não descreve uma experiência de exílio ou na prisão, mas a espera da noronhense Laisy Francine Costa e Silva, de 19 anos, pelo primeiro filho. Como todas as gestantes do arquipélago pernambucano – que é um dos principais destinos turísticos do Brasil, santuário ecológico e Patrimônio Natural da Humanidade, segundo a Unesco –, ela precisa sair de casa no sétimo mês de gestação para dar à luz em Recife, a 545 km de distância.
Em 2004, foi desativada a única maternidade na ilha, no Hospital São Lucas, sob a justificativa de que o custo de manutenção da estrutura era alto demais para a média de 40 partos por ano realizados na ilha principal, a única habitada. Há 10 anos, no entanto, o impedimento causa indignação entre os moradores, que falam em “violação do direito de nascer”.
Agora, o documentário Ninguém nasce no paraíso, do brasiliense Alan Schvarsberg, conta a história de mães insatisfeitas com a situação. Ele descobriu o tema quando ministrava uma oficina de videoativismo em Noronha há dois anos.
“Estávamos falando sobre temas que eles queria abordar e a proibição do parto foi a que mais apareceu. Mulheres e homens diziam que queriam falar sobre isso, mas que tinham receio de falar”, diz.
“O ruim é que você sai da sua casa”, disse à BBC Brasil Monique Souza, de 27 anos, que teve sua primeira filha em 2013 e é uma das entrevistadas no documentário. “Tenho uma casa em Recife, mas meu marido ficou (em Noronha). Tenho um irmão especial e minha mãe teve que deixá-lo lá. E ainda tivemos que sustentar duas casas durante esse tempo.”
Por lei, não há proibição formal para o nascimento de crianças em Fernando de Noronha. No entanto, a Coordenadoria de Saúde do arquipélago, que tem sede em Recife, se encarrega de fazer com que as mães deixem o local a partir da 34ª semana de gestação – mesmo que seja preciso insistir.
“Tinha umas 40 mulheres grávidas aqui na época e umas quatro iam dar à luz no mesmo período que eu. Elas me chamaram para pagar um médico para fazer o parto, mas depois as assistentes sociais me explicaram que não tem UTI, que se acontecesse algo, podia ser um problema”, relembra Monique.
De acordo com a coordenadoria de saúde da ilha, as gestantes fazem pré-Natal pela rede pública em Noronha até o sétimo mês de gravidez e, depois, são encaminhadas para Recife. Todas têm suas passagens de ida e volta – incluindo um acompanhante – pagas. O voo dura 1 hora e 20 minutos.
Em casos específicos, podem também receber hospedagem no hotel Uzi Praia durante todo o período na capital pernambucana, com três refeições e transporte para as consultas médicas. E seus partos são feitos do IMIP, hospital de referência em pediatria na capital.
Nem todas as mães, no entanto, se dizem satisfeitas com as condições.
Quando teve o primeiro filho, em 2011, Silvia Souza da Silva, de 22 anos, diz não ter recebido assistência apropriada. “Eles só me deram a passagem e marcaram para eu ir numa clínica. O médico entrou mudo e saiu calado. Tive meu filho em outro hospital porque uma amiga da minha família fez meu parto.”
“No meu segundo filho (nascido há cerca de três meses), exigi o hotel porque soube que outras pessoas tinham ficado lá. Se você não exigir seus direitos, eles não dão assistência a você.”
Uma das queixas mais comuns entre as mães é a solidão e a falta de opções de lazer durante a espera pelo nascimento do bebê – especialmente quando não se tem tanto dinheiro.
“A gente ia do hotel para o hospital e do hospital para o hotel. É difícil ficar dentro de um quarto olhando pra as paredes. Eu levei meu filho de 4 anos, e para ele também foi difícil. Aqui em Noronha ele brinca no quintal, pode correr. Lá, só podia ficar no quarto”, relembra Silvia.
‘Falta de recursos’
Para Marilde Martins da Costa, de 59 anos, que cumpre seu terceiro mandato no Conselho de Noronha, o “problema é meramente político”.
“Não justifica termos uma parturiente ou duas em um mês, termos um voo saindo diariamente para Noronha e não podermos ter um médico que venha fazer um parto aqui e um anestesista. Eles viriam num dia e voltariam no outro”, disse à BBC Brasil.
Segundo a coordenadora de saúde de Noronha, Fátima Souza, é inviável reabrir a maternidade em Noronha, principalmente por falta de recursos para sustentar a operação.
“Uma maternidade, para funcionar, precisa de toda uma estrutura. E nós temos, no máximo, 40 partos ano em Noronha. Não teria como manter essa estrutura e não teria pessoal suficiente”, disse à BBC Brasil.
“Eu acredito que essas pessoas estão resguardadas de um problema maior. Porque deixar essas pessoas na ilha sem as condições para atendimento de alta complexidade, que a gente sabe que pode acontecer, é um complicador muito maior do que quaisquer transtornos por questões emocionais.”
Souza diz que, para manter a operação permanente da maternidade do Hospital São Lucas, o único da ilha, seriam necessários pelo menos R$ 150 mil reais mensais. Segundo dados da Coordenadoria de Saúde, a administração gastou cerca de R$ 76 mil só com as passagens de avião de ida e volta das 30 mulheres que tiveram filhos naquele ano e seus acompanhantes. Em 2015, até outubro, o gasto foi de R$ 82 mil.
A pasta ainda informou à reportagem que o distrito de Fernando de Noronha recebeu cerca de R$ 2,7 milhões em repasses dos governos estadual e federal para a saúde em 2014. Nesse ano, a cifra caiu para menos da metade – pouco mais de R$ 1 milhão.
Questionada pela reportagem, o governo de Pernambuco não respondeu se seria possível utilizar, parte da arrecadação da ilha com a Taxa de Preservação Ambiental – cobrada diariamente de todos os visitantes – para reativar a maternidade da ilha. Em 2014, segundo informações obtidas via Lei de Acesso à Informação, a arrecadação com a taxa foi de quase R$ 16 milhões.
‘E a fome de madrugada?’
Laisy Francine teve seu primeiro filho há um mês, acompanhada da irmã e do sobrinho de um ano. Ela falou com a reportagem da BBC Brasil pouco antes de dar à luz Arthur. “Não tenho o que falar do hotel, o pessoal é atencioso. Só do que tenho que reclamar é terem me tirado do conforto da minha casa e da minha família. A situação é muito ruim”, disse, ansiosa, ao telefone.
Segundo Laisy, que não tem parentes com quem se hospedar em Recife, uma assistente social em Noronha chegou a negar sua solicitação de hospedagem no hotel, com a justificativa de “corte de gastos”. “Fiquei logo nervosa, comecei a chorar”, lembra.
A Coordenadoria de Assistência Social nega que um corte de gastos tenha sido o motivo da negativa inicial, mas Laisy afirma que teve que insistir para conseguir a hospedagem. “Nunca vi isso. Até no interior mais brabo de Pernambuco tem maternidade. Eu ameacei ir na Justiça, procurar meus direitos. Dias depois me disseram que ‘depois de muitos argumentos’ conseguiram hotel pra mim.”
Com a gravidez, ela teve de deixar o emprego de vendedora de sorvete, em que ganhava R$ 50 por dia. Sua mãe, que tem uma barraca de praia, envia dinheiro semanalmente para as despesas das irmãs.
“Se eu não tivesse minha mãe, como eu ia fazer? Vê só o que eles não estão passando lá pra mandar esse dinheiro pra a gente. Ela manda de pouco em pouco, mas já gastei de R$ 5 mil a R$ 7 mil”, afirma.
“Tem vezes que a comida não é boa, então eu vou e boto do meu dinheiro. Tem coisas que não gosto de comer, então não como. E aquela fome de madrugada? Porque mulher grávida come que só a moléstia.”
A assistente social que se encarrega da assistência às mães em Recife, Talita Lima, diz que não é comum receber queixas relativas à angústia das gestantes.
“Algumas delas já colocaram questões no hotel, como lençóis que precisam trocar mais vezes, a comida que acham que pode estar mais gordurosa. Procuramos o pessoal do hotel para conversar e resolver as situações”, disse à BBC Brasil.
Todas as mães com quem a reportagem conversou, no entanto, reclamaram do custo emocional de serem separadas de suas famílias, com pouco dinheiro e poucas opções de lazer no último período da gestação.
“Se a pessoa não for forte, ela entra em uma depressão muito profunda, porque para sair aqui tem que ter muito dinheiro. Eu não sei andar aqui, tenho que sair de táxi”, disse Laisy.
‘Nó de Noronha’
Alan Schvarsberg, diretor do filme Ninguém nasce no Paraíso, acredita que a expressão “nó de Noronha”, que aprendeu na ilha, pode ajudar a explicar o porquê de as reclamações das mulheres nem sempre chegarem às autoridades.
“O ‘nó de Noronha’ expressa a relação de interdependência da comunidade diante da realidade de viver numa ilha. Pelo fato de tudo vir do continente, até a água potável, as pessoas todas se conhecem e dependem umas das outras e da administração. Então há o receio de falar alguma coisa e sofrer represálias”, afirma.
“A meu ver, esta é uma forma de extermínio muito perversa da população local. As mulheres podem registrar seus filhos, nascidos em Recife, como noronhenses, mas a gestação está se tornando algo muito traumático. Isso está fazendo com que, pouco a pouco, menos mulheres queiram engravidar”, afirma.
Mesmo animada com a chegada do bebê, Laisy afirma que vai pensar duas vezes antes de dar a ele um irmão ou irmã.
“Eu gosto muito de criança, mas para passar isso de novo eu não quer ter filho mais não, Deus me livre. Só se vier morar aqui fora”, diz.