Após o sucesso de “A Flauta Mágica”, o Festival Ópera na Tela retorna ao Arte Pajuçara com outro clássico de Mozart, o espetáculo "Don Giovani".
Don Giovanni já foi protagonista de dezenas de peças de teatro, poemas, romances, balés, quadros, esculturas, instalações e filmes. Os autores dessas obras vão de Tirso de Molina a Byron, de Molière a Shaw, de Baudelaire a Paul Klee. Óperas são cinco, mas não há como não reconhecer que o seu retrato mais conhecido é o criado por Mozart e Da Ponte. Don Giovanni é considerada, por muitos, a maior obra-prima de Mozart. É a “ópera das óperas”. Mas, embora todos tenhamos predileções, ópera não é futebol e campeonatos entre obras de épocas e estilos diferentes não ajudam.
Sabemos que, ao contrário, até mesmo de grandes criações, nesta ópera ninguém consegue se enfadar – ela não tem “momentos ruins”. Será difícil encontrar uma versão musicalmente superior do que essa dirigida pelo superlativo Christoph Eschenbach liderando a Filarmônica de Viena e com um elenco excepcional tendo Ildebrando D’Arcangelo no papel principal.
Mas por que tanta música, poesia, humor, tragédia. Por que, afinal, tanta maravilha em torno de um estuprador, assassino, manipulador, mentiroso daquela laia? O que há nesse libertino que tanto nos encanta? Há muitas leituras possíveis, por isso tantas obras sobre ele.
Don Giovanni se encabularia em um baile funk, se enrubesceria numa rave em Berlim e ficaria embasbacado com a programação na televisão no horário noturno. O que tanto nos conquista certamente não é a devassidão de um sujeito cuja droga mais pesada é o vinho, que mata em duelo e que só seduz mulheres adultas – até onde se saiba, uma de cada vez. Aliás, ele parece não gostar delas – nenhuma o cativa além do necessário para entrar em sua lista. O que este clássico nos diz há tanto tempo?
Don Giovanni despreza todas as leis dos homens e as de Deus e é magnífico até mesmo em seu trágico isolamento do resto da humanidade. Não parece ser a luxúria do prazer ou o desejo de conquista que o motiva, ou mesmo a satisfação de qualquer impulso. Não podemos ter certeza do que sentimos sobre esse sedutor. Por isso, e pela música deslumbrante que ele canta, sucumbimos ao seu charme insidioso.
Kierkegaard imaginava o protagonista como uma força primordial, vital, dionisíaca, puro Eros. Don Giovanni não é alguém para amar ou odiar. Ele está ali para nos lembrar que há dentro de nós um sentimento anterior e superior ao embate dos bons contra os maus – cada um de nós é cada um deles, vivendo uma batalha interna onde podemos ou não conceber e realizar nossas vidas e possibilidades. O maior crime é nos abandonarmos.
Don Giovanni é a força motriz por trás das ações de todos os personagens. Ao contrário de Fígaro, ele não confronta os aristocratas nem os camponeses – quer apenas usá-los. Todos se unem contra o sedutor e, ao final, quando Don Giovanni se recusa a arrepender-se – mesmo torturado pelo Comendador – conquista uma espécie de superioridade por não abdicar de ser quem é. A derrota de Don Giovanni poderia ser o fim da ópera – mas não para os gênios de Mozart e Da Ponte, que também não aceitam a moral da história de que o mal foi derrotado. Os compositores fazem, então, desfilar cada personagem para mostrar como a vida de cada um retornará ao nada, à abdicação da fúria, do desejo, da coragem. Seduzir vem do latim seduccere: pôr em movimento. O sedutor põe sua vida e a de todos, em movimento. Mas também pode significar desvio.
Nesta produção do Festival de Salzburg, o palco da trama é um lobby e um bar de hotel. Sempre escuro, este é um lugar de transitoriedade: o lugar de Don Giovanni. Ele não existe em si mesmo, mas em seu percurso voraz, veloz e fugidio. Em toda a ópera ele está sempre em duo e ‘Fin ch’han dal vino‘, sua única ária solo, é uma metáfora dele mesmo: um minuto e vinte segundos vertiginosos. Uma correria para encomendar uma festa.
A ciência tem respostas fundamentais, mas temporárias, faz parte de seu papel. Se quisermos perceber e expressar as tramas complexas e ocultas da existência, o que não pode ser esquecido ou manipulado, nem descrito por qualquer fórmula, precisaremos das artes. Don Giovanni está em todos nós. Quando o compreendemos, ele já se transformou!
Serviço:
O quê: Festival Ópera na Tela – exibição do espetáculo Don Giovanni, de Mozart
Onde e quando: No Arte Pajuçara, na quinta-feira (25), às 19h, e no sábado (27), 15h
Ingresso: 20 (inteira) e R$ 10 (meia entrada)
Classificação: Livre