Os ardis de desqualificar a discussão de temas incômodos para sepultá-los são recorrentes, mas não inibidores. Enquanto não houver o fiel cumprimento dos direitos e garantias individuais da Constituição, a democracia estará incompleta, e os verdadeiros democratas, apreensivos. A previsão contra o abuso do poder reluz na Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XXXIV.
A propensão do homem ao abuso de autoridade levou Montesquieu a idealizar o sistema de freios e contrapesos. A atual lei sobre o tema (nº 4.898/65) é fruto podre de um Estado autoritário e, portanto, anacrônica e ineficaz.
Sintonizar toda legislação processual-penal com a Constituição Federal de 1988 é trabalho permanente, como estamos fazendo com códigos e outras leis.
Aos adeptos da ligeireza ou da opacidade é imperioso esclarecer que não se pretende embaçar a Lava Jato, que é sagrada. Está em debate uma legislação para punir todos os agentes públicos que, divorciados de legalidade, cometam excessos. Do guarda de trânsito ao presidente da República, passando pelos presidentes do Congresso e ministros do Supremo Tribunal Federal.
Se a Constituição repudia o abuso do poder econômico, político e eleitoral, por que motivo interditar o debate sobre o desvio de autoridade?
O abuso de autoridade no Brasil é uma rotina. A prodigalidade dos episódios desautoriza qualificá-los de fenômenos esporádicos. As torturas na ditadura, os esquadrões da morte, o massacre do Carandiru, o vazamento de sigilos, o baculejo injustificado nas periferias, Sérgios Fleurys, Favela Naval, escutas ilegais e decisões judiciais equivocadas em abundância conformam o traço sistêmico do problema.
As estatísticas reunidas pelo Conselho Nacional de Justiça são eloquentes. Em todo o país, as ocorrências referentes a 2015 mostram 10.308 casos de abuso de poder, 10.047 de abuso de autoridade, além de outros 1.137 casos de exercício arbitrário. São 21.492 registros envolvendo excesso de autoridade em todas as instâncias. Se incluirmos a carteirada e o célebre “sabe com quem está falando”, haveria um crescimento exponencial.
No período mais brutal da ditadura, o jurista Pedro Aleixo, vice-presidente de Costa e Silva, voz solitária, advertia-o sobre os efeitos nefastos do AI-5: “O problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país; o problema é o guarda da esquina”.
A punição ao abuso de autoridade permeia a história do mundo. Da República romana aos nossos dias, as nações democráticas adotaram normas para combater o desvio: Alemanha, Portugal, Espanha, França, Itália, Argentina, Chile e até Cuba. No Brasil a previsão remonta ao Império. Todo poder oprime e não há poder sem limites.
O Senado Federal tem duplo papel no debate. Uma instituição da democracia foi vítima de excesso de juízes de primeira instância que autorizaram diligências de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal. Se tal violência aconteceu com um órgão da soberania nacional, o que pode esperar o cidadão indefeso? A usurpação foi pedagogicamente reformada pela Corte Constitucional.
De outro lado reapresentamos, sem assombro, à luz do dia, a atualização da Lei de Abuso de Autoridade conforme sugestão do 2º Pacto Republicano, firmado entre os três Poderes e por uma insuspeita comissão, integrada pelo ministro do STF Teori Zavascki, pelo desembargador Rui Stoco e pelo ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel.
Marcamos duas sessões temáticas para tratar da proposta. A primeira aconteceu na última semana; para a segunda rodada (1º/12), convidamos o juiz Sergio Moro, um dos críticos da proposta.
Logo após esse debate votaremos o texto, cujo relator é o senador Roberto Requião (PMDB-PR). Nós sabemos com quem estamos falando e queremos falar com todos, se preciso até com o guarda da esquina.